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A aldeia das jardineiras

Ou o modo como se pensa e se faz formação em Portugal

Não é necessário ser-se sapateiro para ver se uns sapatos estão tortos.
Mas também estou certo de que, para dizer como endireitar esses sapatos ? só um oficial do ramo e dos bons.
(Oscar Mascarenhas, DN, 2001)

Durante os governos de Cavaco Silva, Portugal recebeu largos milhões de contos, da então União Europeia, destinados à formação profissional. Podíamos ter aproveitado tão avultadas quantias para criar uma infra-estrutura sólida de suporte à componente de formação tecnológica e profissional. Mas não foi o que aconteceu.
O governo de então, e os que se lhe seguiram, continuando a receber ajudas fortes da UE, preferiram apostar no que designaram por estruturas de formação flexíveis, assente na «sociedade civil», na iniciativa privada e no mercado. Foi um excelente modo de transferir milhões de contos da União Europeia, e dos cofres do Estado, para os bolsos dos empresários e de outros argutos «empreendedores» do negócio da formação.
Não conheço nenhum estudo sério que avalie o modo como se gastou o dinheiro da formação tecnológica e profissional durante estes últimos vinte anos. E no entanto as nossas universidades têm uns largos milhares de investigadores dedicados às causas da economia, da sociologia e da educação.
Não tenho aqui espaço para retractar o que se fez em Espanha, no domínio da formação, no mesmo período. Mas acompanhei, na medida do possível, o modo como se tratou esta questão em regiões como a Galiza, Catalunha e País Basco. Tive ocasião de ver como se articularam os projectos de desenvolvimento - a pelo menos dez anos - com a caracterização dos níveis de formação da população adulta e, finalmente, com o planeamento da formação a fazer, para cada grupo alvo, ao longo do tempo. Em síntese, definiram-se primeiro, regionalmente, os projectos de desenvolvimento económico, social e cultural. Estudou-se a qualificação da mão-de-obra disponível. Elaboraram-se, finalmente, os planos de formação que promovessem a elevação e adaptação do nível de qualificação das pessoas em articulação com o desenvolvimento da infra-estrutura económica, social e cultural que se desejava. A avaliação e a correcção de trajectórias esteve, e está, sempre presente. E não se pense que este trabalho se arrastou por anos.
E em Portugal?
Insisto no interesse de investigarmos o modo como utilizámos esse dinheiro e o modo como outros países tiraram partido dele. Enquanto os cientistas não investigam, e não nos ajudam a perceber melhor a coisa, temos de nos contentar com a visão do senso comum que é a nossa. Para exemplificar permitam que vos conte uma «história da vida real», entre muitas outras que vos podia contar sob o modo obsceno como se trata a formação em Portugal.
Em 1993 interessou-me perceber porque razão Portugal não era auto-suficiente na produção de flores. Temos um clima diversificado e bom. Não temos samba mas temos boa terra, água e muito Sol. E, por isso, eu não entendia porque havíamos de ter de importar flores em vez de as exportar. Ao procurar elementos para esse trabalho jornalístico descobri que no distrito de Viseu tinha terminado um curso profissional de jardinagem. Pareceu-me poder ter interesse saber o que se tinha feito em tal curso e se daí vinha alguma resposta para a questão que me preocupava. Contactada a organização promotora ? uma ONG associada a sete Câmaras Municipais ? foi-me simpaticamente facultada toda a documentação sobre o curso. Este teve a duração de 640 horas de formação. Foi frequentado por vinte e um formandos. Vinte do sexo feminino e um do sexo masculino. O mais habilitado era o do sexo masculino pois tinha 17 anos de idade e havia completado o 6º ano de escolaridade. As vinte mulheres tinham idades entre os 17 e os 36 anos. Onze tinham completado o 1º ciclo e nove eram designadas nas fichas como analfabetas. Das vinte, oito eram da mesma aldeia e da mesma família, sendo que seis eram irmãs e as outras duas primas. Pareceu-me que daquelas oito mulheres e daquela aldeia até podia vir o título para a peça: «A aldeia das jardineiras».
O curso de jardinagem foi dado por professores de um Instituto Politécnico Agrícola apoiados por professores de uma escola secundária local. Guardo o programa e o currículo. Os formandos tiveram coisas como trinta e cinco horas de química orgânica. Vinte e duas horas de estudo de solos. Quarenta e cinco horas de «História da Arte Aplicada aos Espaços Verdes». E outros estudos de profunda erudição como a «rega gota a gota» e «a rega por aspersão». Isto sem falar num profundo mergulho na botânica e na zoologia que o espaço não permite aqui esmiuçar.
Perante um programa tão erudito, eu quis saber como tinham os formadores conseguido ensinar tais matérias a mulheres analfabetas. E quis perceber como tinham vivido o curso as formandas, o que tinham aprendido e que mudanças provocara tais aprendizagens nas suas vidas.
As organizadoras consideravam o curso um sucesso. «Correu maravilhosamente bem».  Dos formadores obtive apenas uma simpática resposta. Uma formadora afirmou-me, por telefone, que tinha sido «uma experiência muito gira». Os restantes formadores não tiveram tempo para me atender.
Fui à aldeia das jardineiras. Estando envolvidas no projecto sete Câmaras Municipais pensava ir encontrar as formandas em pleno trabalho e com obra para mostrar nos jardins municipais. Puro engano. Os vinte e um formandos estavam todos no desemprego. Perspectivas de trabalho? Esperavam por novo curso. Tinham percebido as aulas? "As professoras eram muito simpáticas, falavam muito bem, mas a gente, já se sabe, não entendia do que estavam a falar". Tinham feito trabalhos práticos durante o curso? "Isso não correu bem porque foi no Inverno e choveu muito, ficávamos mais na sala". O que mais lhes agradara no curso? "Foi muito bom. Pagaram-nos a  450$00 à hora, ganhámos um bom dinheiro."
Neste mesmo número, na página 47, Francisco Silva, diz-nos que somos ainda «um país em cujo ?inconsciente? prevalece uma mentalidade de caçadores re-colectores». E eu acrescento: há em nós um desejo de imitar, de copiar e de importar tudo; uma repulsa em pensar, investigar, estudar e trabalhar o que somos; um desejo doentio de trabalhar para o grupinho de pertença ignorando e desprezando os resultados do trabalho; uma enorme capacidade de delapidar meios,  de viver do faz de conta, das «coisas giras», de trabalhar para a imagem. Gente aldrabona. Como gostava de lembrar a avó: «isto não é um país, é um sítio mal frequentado».


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 139
Ano 13, Novembro 2004

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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