É a artéria mais comercial da cidade do Porto. Muito provavelmente aquela com mais actividade por metro quadrado. A sua planificação ficou a dever-se ao espírito visionário dos Almadas cujas obras de requalificação, na segunda metade do século XVIII, trouxeram à cidade do Porto uma nova luz. A Rua de Santa Catarina alberga lojas de vestuário, miudezas, sapatarias, o shopping Via Catarina e inúmeros vendedores de rua, menos ou mais legais. Entre estes, os carrinhos ambulantes de venda de artesanato e bijutaria, resquícios da feira permanente localizada na Praça da Batalha, antes das obras de requalificação da Baixa portuense. Ao fim da tarde, quando o comércio legal encerra, vários homens e mulheres arriscam fazer, de algumas caixas de cartão, bancas para vender óculos ?Versage? e perfumes ?Dior?. E mais à noite há quem nela se abrigue.Avental à cinta. Ar brejeiro. Uma mulher traz os braços cobertos de cintos como se fossem pulseiras. ?Três, cinco euros? é o cinto da moda!?, apregoa com uma rouquidão natural na voz. Há um mês, com cinco euros uma cliente levava apenas dois cintos. Agora a promoção salta ao ouvido de quem passa. Talvez a crise se tenha assentado à porta da vendedora. Ou serão as tais rebaixas que as lojas já anunciam, uma vez que é ainda legalmente cedo para saldar os stocks sem ter lugar à multa. A mesma preocupação norteia a actividade da vendedora. Por isso, quando surge um polícia vindo do início da rua, na Praça da Batalha, ela recolhe a mercadoria no avental e finge olhar as montras. Numa cumplicidade subentendida, o polícia percorre discretamente a ex-zona de venda, mesmo em frente ao café Magestic. Segue rua acima. A vendedora apercebe-se pelo reflexo da montra de que o caminho desimpedido. Mercadoria nos braços recomeça a cantilena: ?É o cinto da moda, três, cinco euros?? O ídolo Viola na mão, sentado na soleira da entrada da cadeia de vestuário Zara, um rapaz canta, num tom dengoso, o ?No woman no cry?, de Bob Dylan. O jovem herdou o lugar deixado vago por Nuno Norte, também ele um cantor anónimo que actuava todos os dias para os transeuntes de Santa Catarina. Isto antes de ser elevado ao conhecimento público, ao vencer o programa ?Ídolos?, onde se pretendia descobrir novos talentos vocais para a música portuguesa. Talvez tenha também a aspiração de seguir as pisadas de Nuno. Talvez tenha uma história parecida. E cativa de igual modo a atenção das jovens que param para o ouvir e falar um bocado. Para já ainda sem nome, na praça. Uns metros mais acima, umas jovens fazem inquéritos com uma amabilidade forçada. Sorriso contra o calor e a indiferença de quem todos os dias passa por elas e tenta escapar à abordagem. ?É consumidora de café?? A pergunta cai no vazio. E é novamente repetida, uma, duas, três vezes até há exaustão. As jovens dizem que os dados são para ?estatísticas?. A sua presença na rua não é nova. Os inquéritos há muito que param quem por Santa Catarina passa, apressado ou não. As perguntas variam em conformidade do produto. O nome do inquirido não interessa, só a idade e a profissão. Ocupações não remuneradas ? estudante, desempregado, doméstica ? recebem no final do inquérito apenas um ?obrigada pela colaboração?. Se a actividade profissional existir então há mais vida para lá das respostas. O entrevistador encaminha as pessoas até uma sala ali perto e ?o resto é com alguém mais experiente?, dizem-nos algumas dessas jovens. Há sempre alguém a querer vender algo em Santa Catarina. Do Magestic ao Império Inaugurado em 1921, e reconhecido como ?de interesse público?, o Café Magestic é um dos pontos turísticos da rua. Outrora um local de habitual reunião da fina-flor da intelectualidade portuense, em particular de Leonardo de Coimbra e seus discípulos. Mas, ali mesmo, quase ao pé, sente-se um cheiro a rissóis que denuncia um outro lugar bem conhecido de quem passeia por Santa Catarina. É esta a especialidade do Salão de Chá Império. As suas portas abriram-se em 1944. Na altura ?era uma casa de chá com 13 mesas? recorda o senhor Pereira, o empregado mais antigo, ainda a trabalhar, com uns respeitosos 85 anos de idade e 60 de casa. Actualmente, contam-se 32 mesas, grande parte das quais ocupando um quintal existente nas traseiras do edifício. Uma obra da actual gerência que comprara há 16 anos a casa ao dono originário: o senhor Carneiro cuja principal preocupação na altura da venda foi a de ?assegurar a continuidade? do negócio. ?Ele não queria que a confeitaria fechasse por nada deste mundo?, recorda Maria Elisabete, actual dona da Império. Tanto que esteve até aos 72 anos à frente da confeitaria. À espera do trespasse certo. Um espaço de convívio O Via Catarina foi uma das maiores intervenções que o casario da rua alguma vez viu. É uma das obras mais emblemáticas. E não é só mais um shopping é um centro de convívio de dia. Nove e meia. Sentados numa mesa da praça da alimentação, António Oliveira, 66 anos e Luís Lima, 79 anos, lêem o jornal. Não o velho ?Janeiro? que ali dominava a rua, agora liofilizado nas paredes do MacDonalds. Há gente ? velhos tipógrafos e velhos jornalistas ? que se recusam a entrar no Via Catarina. Para evitar lágrimas. Não aqueles dois confessos ?residentes? diários do shopping, António há um ano, Luís há dois. Eles e os amigos. Ali se reúnem, ali conversam, ali passam todas as manhãs e algumas das tardes. ?70% das pessoas que param aqui são idosos?, garantem. ?Os reformados não têm para onde ir, lamenta António. E pior, acrescenta: ?Não têm dinheiro?. O Via Catarina tornou-se assim ?um hábito? que ?veio beneficiar? as suas vidas, admitem. ?Nem quero pensar se isto fechasse??, suspira António Oliveira. ?Estávamos todos na Praça da Batalha?, completa Luís Lima. ?O espaço é agradável e se quisermos tomar algo, tomamos, se não, está tudo bem?. É a não obrigatoriedade do consumo que para Luís Lima torna a Praça da Alimentação mais atractiva. O amigo concorda. Mesmo assim lá se vão tomando uns cafés e ?de vez em quando, mas só de vez em quando, lá tomamos uma cervejita e uns doces?, revelam como quem confessa um pecado. É a reforma que ?não dá para mais?. Talvez por isso nenhum dos dois se aventure nas compras pelas outras lojas do shopping. ?Os preços não são para o nosso nível? desabafa António. E quanto a isso há na opinião destes reformados apenas um culpado: o euro. Se não atente-se nas contas de António: ?O café custava cinquenta escudos, mas com o euro passou a custar cinquenta cêntimos, ou seja, cem escudos?. Contas feitas à vida, e com a conversa já demorada Luís lamenta num tom meio a brincar meio a sério: ?Sabe o que nos faz mesmo falta? Gente como a menina, que venha falar connosco!?. Pintores sem palavras Pendurados nos tapumes de uma loja, devoluta ou a aguardar há muito por obras, estão meia dúzia de quadros. O homem que os vende trá-los cobertos de papel celofane para evitar a sujidade. De poucas palavras, confirma que é o autor das paisagens. Vistas da cidade, o casario laranja à beira rio, a ponte D. Luís pintadas a óleo. Os preços variam, entre os 85 e os 175 euros. São três da tarde e o pintor, sem querer grandes conversas, atira: ?Estou aqui desde as dez e quer saber quanto ganhei?? Em vez da resposta tira do bolso uma nota de dez euros em fúria: ?isto, só isto!?. Duas gravuras do Porto antigo, a cinco euros cada, de outros autores. A uns metros de distancia do pintor anónimo, um outro. Não domina o português, veio da China e vende aguarelas com árvores, flores de lótus e alguns caracteres chineses a cinco euros. A sua sorte não é diferente. Mas a calma é maior. Sentado no chão rodeado dos seus quadros apenas se surpreende pelo desleixe de uma mulher que passa mais atenta às montras e lhe pisa um dos desenhos carimbando-o com formato da sua meia sola. Sem lhe acrescentar valor. Catarina de Alexandria Entramos na Capela das Almas, uma construção do século XVIII, onde reside o culto à santa que dá o nome à rua. Decorria a missa. Uma miúda pequena, cabelo preso, ?corsários? verdes, entra na Igreja e, sem se dar conta do ?incómodo? que suscita a quem assiste ao culto, desfia uma lengalenga onde apenas se percebem três palavras: ?esmola, por favor?. A miúda desloca-se entre os bancos repetindo no silêncio da assistência bem alto o pedido. Sai de mãos vazias. E deixa os fiéis constrangidos. Há 52 anos que o padre Alexandrino Brochado celebra missa na Capela das Almas onde também ocupa o cargo de reitor. É ele quem nos conta a história de quem dá nome à rua: Santa Catarina de Alexandria. É Ela a protagonista dos painéis de azulejos azuis que cobrem as paredes exteriores da igreja, da autoria de Eduardo Leite. Eles contam a história das discussões teológicas que Santa Catarina travou com os lentes de Alexandria. ?Converteu 18 sábios à fé cristã, só pelo poder da argumentação?, aponta Brochado. ?Foi mártir das perseguições romanas no Egipto e, por não renegar a sua fé, morta com requintes de malvadez?. Por tal retórica, Santa Catarina é a padroeira dos estudantes mas também, ainda que não pareça haver qualquer razão especial, das costureiras e alfaiates. Tanto que estes últimos lhe dedicavam uma festa realizada a 19 de Setembro em que depositavam flores de nuguet numa pequena estátua localizada no cruzamento com a Rua de Passos Manuel por cima do letreiro de uma ourivesaria que fica na esquina. O ceptro de Santa Catarina ?Quando vim para aqui a rua era muito diferente, era mais movimentada à noite. As pessoas passeavam como se fosse São João?, recorda o padre Alexandrino Brochado. ?Á noite a rua agora é dos marginais?, diz referindo-se aos infelizes. ?Uma sombra do que era?, é assim que o padre descreve a actual rua de Santa Catarina. No entanto, a Capela das Almas continua a ser ?a igreja mais movimentada do Porto?, assegura o padre. Há muita gente das redondezas que se desloca para os cultos. ?Mas a população residente na rua é cada vez menor?, confirma Alexandrino. Foi para a periferia. O facto de existirem muitas casas devolutas, algumas em estados avançados de degradação e cada vez menos residências e mais consultórios e escritórios ?deixa, na opinião do padre, a rua deserta e mais perigosa?. Contudo, Alexandrino Brochado vê a degradação dos edifícios como ?uma fatalidade histórica?. Indesejável porém compreensível: ?Com rendas a rondar os mil escudos (cinco euros) os proprietários obviamente não fazem obras?. E assim se vai desertificando a rua que segundo o padre ?já perdeu o ceptro de mais importante da cidade?. Acaba a zona interdita ao trânsito, a mais conhecida, a dos passeios cobertos da calçada portuguesa. Começam os passeios de cimento aos quadrados que levam até ao cimo de Santa Catarina, à Praça do Marques do Pombal. Esse trecho da rua tem um ar abandonado como se esperasse melhores dias. Casas devolutas, com placas amarelecidas onde se lê a custo a palavra ?Vende-se?. Pequenas lojas comerciais encerradas. Algumas mercearias, onde se abastecem os moradores mais idosos, os últimos a habitarem os poucos casarios de azulejos ora azuis, ora verdes e vermelhos tinto. As cores mais apagadas. Mas é ainda Santa Catarina. Homes de LetrasOs casarões estreitos com fachadas de azulejos azuis, verdes e vermelhos tinto da Rua de Santa Catarina viram nascer e morrer alguns ?ilustres? escritores e poetas portugueses e presenciaram um casamento célebre.
No nº 206, nasceu o escritor Arnaldo Gama (1828-1869). Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, exerceu a advocacia no Porto, o cenário principal da sua obra de ficção. Foi redactor do jornal literário portuense ?A Península? e do ?Jornal do Norte?. Públicou poesia, contos e romances. Mas a distinção veio enquanto autor de romances históricos: ?O Génio do Mal?,1856-1857, em quatro volumes; ?Um Motim de Há Cem Anos?,1861; ?O Sargento-Mor de Vilar?,1863; e ?A Última Dona de S.Nicolau?, 1864.
No nº 469, nasceu o poeta António Nobre (1867-1900). Após sucessivos chumbos no 1º ano do curso de Direito, da Universidade de Coimbra, foi para Paris em 1890. É aqui que completa os estudos em 1895, em Ciências Sociais. Após ter sido aprovado no concurso para a carreira diplomática, a tuberculose, doença da qual viria a falecer, impede-o de ocupar qualquer cargo. O exílio em Paris e o seu estado de saúde precário marcaram a poesia de António Nobre. ?Só?, 1892, foi o único livro publicado em vida, toda a restante obra é póstuma: ?Despedidas? (1895/99), 1902; ?Primeiros Versos? (1882/89), 1921; ?Cartas e Bilhetes Postais a Justino de Montalvão?, 1956; e ?Correspondência?, 1967.
No 2º andar do antigo nº 458 (actual nº 630) viveu Camilo Castelo-Branco (1825- 1890) e foi aí que se celebrou o casamento do escritor com Ana Plácido a 9 de Março de 1888. Camilo Castelo-Branco aparece no Porto em 1843 para se matricular na Escola Médico-cirúrgica. Estudante carenciado, a cidade burguesa e endinheirada aguça-lhe o temperamento sarcástico e observador, que viria a fazer dele um romancista e do Porto o cenário das suas obras. Em 1846 foi preso na Cadeia da Relação do Porto, por causa de uma aventura amorosa com D. Patrícia Emília do Carmo, de Vila Real, de cujas relações nascera uma filha. Depois de uma passagem por Coimbra e Vila Real, em 1848 fixa residência no Porto onde durante os anos de 1850 a 1852 frequenta o seminário episcopal. Em 1857 começa o romance com Ana Plácido, de uma família distinta do Porto, do qual resulta um processo de adultério, uma separação conjugal judiciaria e a prisão dos dois amantes (1860). Em 1861 Camilo foi julgado e absolvido. Vive uns tempos em Lisboa, mas porque a sua saúde estava debilitada retira-se para a quinta de S. Miguel de Seide, que pertencia a Ana Plácido. Um acidente de comboio, numa viagem até ao Porto, deixa-o quase cego. Desgostos com os filhos, a morte de uma neta de 3 anos agravam a sua saúde e despertam no escritor a vontade suicida. O seu casamento com Ana Plácido dura apenas dois anos. Camilo põe fim à vida com um tiro na cabeça.
No nº 1018 viveu o poeta Guerra Junqueiro (1850-1923) durante longas temporadas do final da sua vida. Fez os estudos secundários no Porto, formou-se em Direito em Coimbra (1873). Foi deputado de 1878 e 1891, primeiro militando no Partido Progressista e depois no Partido Republicano. Impalntada a Reública, ocupou o cargo de ministro de Portugal na Suíça (1911-1914). Nas suas obras a capacidade verbal foi posta ao serviço da causa republicana. Destacam-se: A ?Morte de D. João?, 1874; ?A Velhice do Padre Eterno?, 1885; ?Os Simples?, 1892; ?Pátria?, 1896.
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