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«Utopias de médio alcance»

Para almejar a continuidade do género humano, é necessário, antes de tudo, optar por uma democracia progressiva que, sem abdicar da razão, combine justiça social e liberdade?

Desde o momento em que a civilização industrial soçobrou numa série de impasses, a enormidade do desafio ecológico passou a ser reconhecido de forma ?consensual?. Tanto o Norte como o Sul, não obstante as suas diferenças, foram postos diante de problemas comuns. Significa isto que existe um risco de barbárie cuja dimensão é global.
Trata-se de um risco que, sempre que se afirme as ?ilimitadas propriedades? do desenvolvimento, se tornará cada vez mais acentuado. Por outro lado, a mera apologia ao colapso da ideia de progresso com raízes assentes no pensamento ilustrado, não nos levará muito longe. O simples protesto (ecológico, antirazão), mesmo sendo um ?movimento? e compreenda outros movimentos, ainda assim falhará na percepção do caminho para uma mudança que não se limite a mentalidades e ideologias, mas que represente um instrumento político para dias melhores. 
Se nos é permitido atribuir uma nova matriz à noção de ?teorias de médio alcance?, de Robert Merton, podemos dizer que se trata de definir um agir em função de ?utopias de médio alcance?. Para almejar a continuidade do género humano, é necessário, antes de tudo, se fazer opção por uma democracia progressiva que, sem abdicar da razão, combine justiça social e liberdade. Em face de questões bem presentes, o olhar utópico ?em médio alcance?. Ou bem são construídos mecanismos e instituições com os quais o/a cidadão/dã possa se relacionar, nos vários níveis da sociedade, com a res publica, ou não serão superados, por exemplo, os impasses que coagulam a democracia representativa. Não podemos fugir da redefinição do escopo da política e de estendê-lo para muito além do Estado e dos partidos.
A não ser assim, estaremos sempre a vaguear em abstracções perante o cenário descortinado pelo mundo pós-industrial - abstracções que, se por uma parte, são importantes como momentos de dúvida ontológica, por outra parte, são insuficientes para dar conta do contexto em que o ser se encontra situado. O ?pessimismo angustiado?, a ansiedade existencial, as metamorfoses identitárias, etc., não são fenómenos que emergem do vazio.  Não é pouco revelador que, já há algum tempo,  estejamos a assistir, de forma acentuada, a manifestações dessa natureza. O estiolamento da civilização industrial não é apenas o colapso de ?algo material?, mas representa também o eclipse de um referencial indutor de subjectividades, onde o neoplatonismo galileano, ao produzir uma linguagem comum à visão da natureza e da prática social, apresenta-se como autêntica mutação no plano cognitivo, vector do programa pelo qual se pautará a criatividade. Foi assim que os impulsos mais fundamentais do ser humano, gerados pela necessidade de auto-identificar-se e situar-se no universo, e que são a matriz da actividade criadora ? a reflexão filosófica, a meditação mística, a invenção artística e a investigação científica -,directa ou indirectamente, foram subordinados à especialização do cálculo quantitativo.
?Utopias de médio alcance?. Aqui o que importa é, frente aos desafios contemporâneos, definir um agir que se consubstancia como um movimento, criando novos espaços públicos, de modo que as pessoas e as entidades civis possam tomar parte nas decisões institucionais, o que significa negar tais decisões como ?colecção? de meras ?políticas sociais?, apoiadas por burocracias estatais animadas pela doutrina do partido detentor do poder. Contudo, ao contrário do que alguns pensam, o cenário onde este agir se move não se coadune com a ideia de ?morte? da razão, donde seguir-se-ia uma fragmentação que, por não ter nenhum postulado de referência, nutre-se do relativismo céptico e, por vezes, estimula o cinismo político.
Se é verdade que a sensação de risco, de perplexidade e de incerteza são dimensões bem presentes no mundo actual, abalando crenças da racionalidade ilustrada, também não é menos verdadeiro que temos assistido a um ascendente entrelaçamento entre ciência, tecnologia e liberdade, forjando, como alguém já disse, uma ?nova racionalidade?.  Esta ?nova racionalidade?, decerto, constitui-se num terreno fértil para as ?utopias de médio alcance?. Frente ao que ainda não é, as ?utopias de médio alcance?, diferente do refrão pessimista dos cépticos, contrapõem uma das divisas blochianas: o ainda-não-ser é a fonte das possibilidades imanentes do ser que ainda não foram manifestadas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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