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Jovens e idosos nas políticas culturais da identidade (I)

Neste número abordaremos as culturas juvenis na nossa sociedade contemporânea. Em Outubro, daremos continuidade e conclusão ao tema abordando a forma como as nossas sociedades lidam com as pessoas dos idosos.

Em janeiro de 2002, os noticiários relatavam o caso de um aposentado, ex-policial, que ao entrar em um ônibus, na cidade do Rio de Janeiro, deparou-se com um grupo de rappers. Intransigente com seu comportamento ruidoso, expulsou-os do ônibus, obrigando-os a saltar do veículo em movimento sob a mira da arma que empunhava. Não satisfeito com a fuga imediata e desesperada dos jovens, alvejou pelas costas o último rapaz que se jogava para fora do coletivo. As perguntas que nos vêm à mente, diante de um episódio como este, além de, obviamente, interrogarem as razões que justificariam tanta hostilidade, questionam os poderes de que estaria investido tal indivíduo para arrogar-se o direito de agir com tamanha agressividade contra jovens cidadãos que, se cometiam algum deslize, seria apenas o da falta de compostura.
O fato relatado nos coloca no centro das discussões mais atuais sobre a questão das culturas juvenis e da forma como elas vêm sendo tratadas no cenário da política cultural contemporânea. Objeto de investigação nas análises culturais de tradição anglosaxônica desde o período pós-guerra, em nosso meio a preocupação com os agrupamentos culturais dos jovens é mais recente. Predominantemente, estes grupos têm sido alvo de estudos etnográficos sob óticas antropológicas e sociológicas mais tradicionais. As abordagens que os focalizam sob o ponto de vista das políticas culturais que articulam estas formações no quadro das distribuições hierárquicas das sociedades capitalistas são ainda incipientes. A própria denominação mais corrente - subculturas, adotada para identificá-las nos cenários teóricos em que se desenvolvem as análises, por si só remete estes grupos a uma posição, no mínimo, entendida como derivada de uma cultura mais abrangente, mais antiga e, por isso mesmo, vista como mais legítima. Embutida nisso, está a suposição, que ainda persiste, de que existiria uma ?boa e verdadeira cultura? pela qual se pautariam os hábitos e formas adequados de viver e conviver, ao passo que, dissidentes ou opostas a ela, estariam ?as outras culturas?, aquelas ?sub? formas de conduzir-se e habitar o mundo. Segundo esta lógica, haveria uma juventude ?boa? e ?normal? e, de outro lado, estariam os grupos juvenis considerados anômalos, cujos comportamentos e preferências, de várias ordens, discrepam do que é tomado como padrão. Essas identidades se constituem segundo os sentidos a ela atribuídos por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos que as representam. A representação está, assim, implicada na classificação e reordenação das coisas do mundo, nas quais o poder atua impondo as ordens simbólicas que ocuparão o pólo privilegiado.
A identidade dos jovens ditos ?normais? vem sendo construída com grande investimento da mídia, representando uma certa ?juventude padrão da América?: aquela feita sob medida para consumir a parafernália de produtos (roupas, cosméticos, tênis, celulares, carros, computadores, CDs, DVDs, brinquedos, jogos, refrigerantes, etc., etc.) que as sociedades capitalistas põem em circulação. Por sua vez, os tais grupos tomados como ?estranhos? e fora da ordem, objetivados e subjetivados por discursos que os produzem como ?os outros?, são execrados porque representariam uma ameaça à ordem social existente. Não podemos esquecer, contudo, que freqüentemente é deles que parte uma impiedosa crítica ao consumo desmedido e a certos padrões definidos como normais.
Em um artigo em que analisa o filme Kids(1), Henry Giroux (1996) apresenta-o como uma estratégia identitária de inspiração conservadora, dedicada a promover uma visão demonizada de certas facções da juventude contemporânea. Neste filme, a juventude é apresentada como sexualidades e corpos fora de controle. Segundo ele, nas políticas representacionais da atualidade, a sexualidade tem sido intensamente evocada quando se trata da identidade de jovens. Em sua crítica, Giroux argumenta que, ao ser descrito como um documentário dedicado a apresentar de forma ?realista? o comportamento de um grupo, o filme pretende retratar a face crua e fria de condutas juvenis que estariam a exigir vultosos investimentos disciplinares sobre seus corpos e condutas. Essa imagem de uma impiedosa cultura jovem urbana que celebra a violência e a sexualidade frívola constitui-se em contraposição a uma outra identidade juvenil regrada e normal; a saber, aquela que denomino ?juventude padrão da América capitalista.
No Brasil, investimentos discursivos deste tipo podem ser observados com grande freqüência, muito particularmente no que se refere às identidades juvenis associadas a preferências musicais. Punks, rappers e pagodeiros, entre outros grupos, têm igualmente sido alvo de políticas identitárias como esta relatada pelo crítico estadunidense, e de violências como a que relato no episódio que inicia esta matéria. Em análise que realizei sobre o programa Bambuluá(2) (Costa, 2002), chamei a atenção para as composições identitárias da novela de mesmo nome relativamente às culturas juvenis, em que jovens da cidade do mal - Magush - eram representados por integrantes das ditas subculturas juvenis punk e dark, amantes do rock e de outros sons do tipo heavy metal, em oposição à juventude boa e ?normal? de Bambuluá - a cidade do bem -, que se diverte embalada pelas músicas da Angélica, uma das tantas heroínas fabricadas pelos complexos empresariais midiáticos para ser consumida em novelas, discos, shampoo e outros adereços. Bambuluá é um texto cultural que nos interpela mais ou menos assim: ?Olhe como se comporta um jovem certo e um jovem errado!? É assim que os discursos da TV fabricam identidades e constituem subjetividades. E é assim também que vão sendo reafirmadas as cruéis políticas de identidade que discriminam e excluem.

Notas:
1) Produzido em 1995, Kids é considerado um dos filmes mais controvertidos sobre a vida sexual de adolescentes e jovens. Dirigido por Larry Clark, a partir de um roteiro escrito por uma jovem de 19 anos, o filme é um documentário protagonizado por skatistas amigos da autora do roteiro. No filme não há atores ou atrizes profissionais.
2) Este Programa foi apresentado pela Rede Globo de televisão, todas as manhãs, de outubro de 2000 a dezembro de 2001.
Referências
COSTA, Marisa Vorraber. Ensinando a dividir o mundo ? as perversas lições de um programa de TV. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, ANPEd, n. 20, ab./mai./jun. 2002.
GIROUX, Henry. O filme KIDS e a política de demonização da juventude. Educação & Realidade, v. 21, n. 1, jan./jun., 1996.
ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu privado. In: SILVA, Tomaz T. (Org.) Liberdades Reguladas. Petrópolis: Vozes, 1998.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil
Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil

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