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Ser negro(a) na sociedade brasileira o olhar de uma criança

Afirmar a identidade negra faz parte de um processo de ruptura com uma história de negação dessa identidade que foi, historicamente, inferiorizada e subjugada diante de um ideal estético-cultural eurocêntrico.

O processo de construção da identidade étnico-racial na sociedade brasileira revela-se bastante complexo. Contrapondo-me ao ?mito? da democracia racial, ainda persistente no discurso de muitos intelectuais, busco trazer ao diálogo o trabalho de uma menina negra, aluna da 3ª série de uma escola pública do município de São Gonçalo, Estado do Rio de Janeiro, pois revela o que é ser negro(a) numa sociedade racista.
O desenho, retratando quatro meninas negras, traz um balão com a fala de cada uma: a primeira diz: Eu sou morena; a segunda: Eu sou marrom; a terceira: Eu sou negra; a quarta: Há! Há! Ela é negra.
Quanto ao texto escrito:
Nós que somos negros temos um ?problema?.
Uma vez, eu estava brincando, aí veio um menino e perguntou: - Posso brincar? Aí eu falei: - Está certo. E ele respondeu: - Cala a boca, sua macaca, eu não estou falando com você, sua Chita.
Eu fui pra casa e comecei a chorar.
E falei: tenho vergonha de ser preta.

Que rico trabalho para ser analisado teoricamente! Mas qualquer pessoa que o faça não dará conta do sentido da experiência vivida pela menina. Já de início ela apresenta as crianças negras atribuindo-se diferentes classificações em relação à cor. O que tentamos explicar teoricamente, uma criança faz na prática, porque sente na pele o que é ser negra na sociedade brasileira. Ela destaca que os negros têm um ?problema? e evidencia ser apenas um dos inúmeros exemplos de crianças negras que crescem reconhecendo-se como um ?problema? e deparando-se com ?problemas?, com obstáculos na sociedade e, por conseqüência, na escola.
Em um primeiro momento, ao ler o texto em que diz envergonhar-se de ser ?preta?, não é só a negação do ?ser como é? ou ?ser o que é? que se explicita, mas a afirmação de uma identidade negada hegemonicamente que é denunciada pela escrita e pela imagem, pois ela se identifica na primeira pessoa do plural e não no singular: Nós que somos negros temos um ?problema?. Não fala individualmente, fala enquanto coletivo, incluindo todos(as) que se encontram em condição inferiorizada.
Há um processo ambíguo de afirmação e negação da identidade e ele parece ser explicitado pela menina negra que afirma/nega, mas denuncia o lugar de ?outro? na História, pois o ?eu? já está ocupado pelo branco. As relações estabelecidas entre o eu e o outro são conflituosas, pois a sociedade brasileira, de cunho assimilacionista, estabeleceu como modelo e padrão, o branco, ocidental, cristão ? o ?eu? ? parâmetro, referência para o ?outro?, que a esse modelo deve assemelhar-se.
Se a criança identifica que ?nós? temos um ?problema?, é sinal de que nós, considerados ?outros? não são exceção, e, ainda assim, têm um ?problema?. Portanto, o preconceito racial é ?invisibilizado?, silenciado, negado e o que se encontra por trás das ?evidências invisibilizadas? são as relações hierarquizantes de poder, pautadas pela lógica da homogeneização, da semelhança, da igualdade, que estigmatiza e inferioriza o que é diferente do ?eu?, desqualificando-o e tratando-o como desigual e inferior.
Assim, afirmar a identidade negra faz parte de um processo de ruptura com uma história de negação dessa identidade que foi, historicamente, inferiorizada e subjugada diante de um ideal estético-cultural eurocêntrico. O reconhecimento das raízes africanas como potenciais na sociedade brasileira podem possibilitar a afirmação e valorização da identidade negra e nosso papel como educadores(as) é fundamental nesse sentido.


  
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

Regina de Jesus
Univ. Estadual do Rio de Janeiro, Brasil
Regina de Jesus
Univ. Estadual do Rio de Janeiro, Brasil

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