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A segunda morte da Revolução dos Cravos

A revolução iniciada a 25 de Abril de 1974 acabou em 25 de Novembro de 1975. Mas essa foi só a sua primeira morte, aquela em que a democracia participativa desapareceu em favor da democracia formal. A segunda morte veio a 9 de Julho de 2004, em que o próprio voto, único sobrevivente - embora em adiantado grau de apodrecimento - do "governo do povo", morreu.

O dia 9 de Julho de 2004 deverá ficar na História da gente de bem em Portugal como o dia da segunda morte da Revolução dos Cravos.
Poucos dias antes, em vésperas da final do campeonato europeu de futebol em que participava uma selecção a representar Portugal, morria Sophia de Mello Breyner Andresen, a mais importante poetisa do século XX português, a autora do mais importante poema sobre aquela Revolução. Embora muito próxima das posições políticas pretéritas do actual Presidente  da República Portuguesa, Jorge Sampaio, e credora da admiração mais forte que, desde há muitos anos, portugueses deram a um escritor vivo, Sophia não mereceu a declaração de luto nacional do mesmo Presidente. O seu funeral decorreu, discreto, com uma pequena multidão de admiradores. Não sei se houve algum representante do mais alto magistrado  da nação,  nem se alguém do Palácio de Belém se lembrou de que Sophia, entre outras coisas, era uma representação de Portugal. Mas sobre o seu túmulo nascerão cravos.
Adiante.
Depois de 15 dias a fazer esperar os cidadãos, depois de Durão Barroso ter pedido unilateralmente a demissão de primeiro-ministro para se candidatar a Presidente da Comissão Europeia, Jorge Sampaio diz, num discurso em que o verbo "garantir" ocorre duas vezes, o substantivo "garante" uma e o substantivo "povo" nenhuma, que irá oferecer o cargo de primeiro-ministro a outro senhor, sem dissolver a Assembleia da República, nem convocar eleições.
Logo após a declaração de Sampaio, morria, de ataque cardíaco, Maria de Lurdes Pintassilgo, ex-primeiro-ministo, ex-candidata a Presidente da República, a única pessoa de quem ouvi, ao vivo, a descrição perfeita e apaixonada do que verdadeiramente foi aquela Revolução. Até ao último momento, Maria de Lurdes aconselhava ao Presidente e a nós todos que outra solução para a deserção do primeiro-ministro existia, em que a capacidade de imaginar as formas de participação dos cidadãos era mais importante do que os «lobbies» de empresários, «jet set», faladores populistas e vigaristas em que o poder político português se afoga cada vez mais. Muitos ouvimo-la dizê-lo, com a ternura que era inconfundivelmente sua, na rádio e na TV. O seu coração falhou depois, depois, certamente, de ouvir Sampaio ignorar bem alto a maioria do seu mesmo Conselho de Estado convocado de propósito, a vontade da maioria dos portugueses, e retirar ao povo a capacidade de decidir sobre o seu futuro. Mas sobre o túmulo de Maria de Lurdes nascerão cravos.
A revolução iniciada a 25 de Abril de 1974 acabou em 25 de Novembro de 1975. Mas essa foi só a sua primeira morte, aquela em que a democracia participativa desapareceu em favor da democracia formal. A segunda morte veio a 9 de Julho de 2004, em que o próprio voto, único sobrevivente - embora em adiantado grau de apodrecimento - do "governo do povo", morreu. Agora só restam os homens de palácio que trocam cargos entre si, a chamada "classe política", pois a política, isto é, a vida em sociedade, já não pode ser deixada aos mortais.
A ironia de tudo isto é que foi um homem com fama de resistente à ditadura o autor e único responsável por esta afirmação de medo, medo de mexer com os interesses instalados pelos poderosos, medo de levar de volta, ainda que tão-só ao de leve, o poder ao povo que o elegeu, medo de agitar as águas, ainda que saiba que o primeiro-ministro a indigitar é um demagogo profissional, detestado dentro do seu próprio partido, medo de tudo em nome da "estabilidade", medo de tudo o que possa significar vida e liberdade.
Paz à sua alma, pois quando for a vez do Presidente morrer, será como quis o poeta Carlos Drummond de Andrade: sobre o seu túmulo «nascerão flores amarelas e medrosas".


  
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

Hélio J. S. Alves

Hélio J. S. Alves

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