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O mito da ?capacidade de sofrimento? ou ?a táctica do sofrimento?

Entre nós, os sucessos do euro 2004 têm sido um contexto onde muito se tem procurado causas explicativas. (?)Uma das teses mais ouvidas e que serviram para explicar o nosso sucesso, foi a capacidade de sofrimento da nossa equipa. É sobre esta preocupante tese que acho que vale a pena reflectirmos, pois ela veicula uma perigosa mensagem educativa.

As grandes vitórias bem como as grandes derrotas são sempre um palco privilegiado de busca intensa das causas que os poderão explicar. Entre nós, os sucessos do euro 2004 têm sido um contexto onde muito se tem procurado causas explicativas.
Embora eu não seja um fervoroso adepto da ideia de que tivemos um grande sucesso, o certo é que há quem considere que o tivemos e sobre isso avance as mais variadas explicações. As explicações que têm sido avançadas e corroboradas por imensa gente e pela própria imprensa, são imensamente interessantes por nelas podermos encontrar elementos centrais da nossa personalidade colectiva, do nosso sentir e do nosso pensar e que surgem como uma espécie de banho cultural que a todos atinge.
Uma das teses mais ouvidas e que serviram para explicar o nosso sucesso, foi a capacidade de sofrimento da nossa equipa. É sobre esta preocupante tese que acho que vale a pena reflectirmos, pois ela veicula uma perigosa mensagem educativa.
O ?expresso? intitulava uma notícia ?A táctica do sofrimento?, expressando assim e difundindo assim um dos mitos mais erráticos que foram difundidos a propósito do futebol mas que pode muito bem ser extrapolado para outras áreas. Este artigo termina de maneira clarificadora: ?O sofrimento da equipa portuguesa deu resultado, com uma passagem histórica à primeira final de um Europeu?. Vários analistas que ouvi começaram os seus comentários apontando a capacidade de sofrimento da equipa como um dos segredos do sucesso.
Temos, pois, aqui uma verdadeira tese que pode ser subdividida em pequenas miniteses. Vejamos:
a) O sofrimento é uma estratégia vencedora;
b) Não tivesse havido sofrimento não havia vitória;
c) Quem não sofre não pode esperar vencer e ter alegrias.
d) Se queremos que alguém vença ou seja bem sucedido teremos de programar-lhe sofrimento.
Acredito que dificilmente esta tese poderia ser veiculada em qualquer outro país. Quem se lembraria de programar sofrimento quando o objectivo é ser bem sucedido? Talvez mesmo só os Portugueses que olham com inusitado prazer aquilo que julgam que foi sofrimento. Contudo, não conheço alguém que tenha sido bem sucedido a acreditar no sofrimento como ?estratégia vencedora?.
Esta tese faz-me lembrar o pensamento mágico das crianças pré-escolares que confundem causas com efeitos ou que apontam como causas certas variáveis retiradas de forma completamente casual da amálgama de variáveis que sempre podemos encontrar em qualquer fenómeno.
Admito como verdade que, frequentemente, o sucesso e, mais importante ainda, o atingir níveis elevados de competência não se obtém sem esforço continuado. Contudo, porque havemos de identificar esforço com sofrimento, persistência com sofrimento? Capacidade com sofrimento, habilidade com sofrimento, acaso com sofrimento? Os bons treinadores parecem-me ter especial cuidado para que o próprio sofrimento, quando ocorre ? e ele ocorre necessariamente -  seja pelo menos cognitivamente reformulado para que não seja interpretado como sofrimento sem mais. Este pensamento mágico teve um curioso paralelo com a dimensão mística do nosso seleccionador e com a simbólica observação do nosso ex-primeiro ministro que afirmava a tese de que uma certa sua gravata trazia sorte à selecção. Vivemos, pois, completamente rodeados de um mundo de fantasia a que importa por cobro.
Não me custa imaginar que haja alguém nas escolas, já no início do próximo ano lectivo, a propor ou a sugerir aos seus alunos o sofrimento e apontem como exemplo a selecção Portuguesa. Queria apenas recordar que isso é pensamento mágico. E de que a experiência do sofrimento, sem mais, só pode ter como resultado o tentar evitá-lo. E de que é preferível promover como causas do sucesso o esforço, a capacidade e habilidade, a persistência, o ter dúvidas, o espanto, a alegria e, at last but not least o próprio sucesso. Sim, o sucesso é uma fonte principal do próprio sucesso, precisamente porque é com as experiências de sucesso (e não com ?a capacidade de sofrimento?) que as pessoas mais se conhecem e mais capazes ficam de gerir a sua própria complexidade.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

José Ferreira Alves
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
José Ferreira Alves
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho

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