O jornalista Jean Hatzfeld, numa entrevista do semanário EXPRESSO, a propósito da recente edição em Portugal do seu livro Tempo de Catanas, fez declarações que certamente interessariam a Freud, porque vão ao encontro da sua proposição sobre a primeira origem da agressividade do ser humano: a inclinação nata para a destruição (instinto de morte). Tendo ouvido muitos dos inúmeros assassinos hutus que, no Ruanda, entre Abril e Julho de 1994, mataram à catanada 800.000 tutsis (um povo que habita a mesma região, fala a mesma língua e professa as mesmas crenças), HatzfeldHH concluiu: "Não se trata de um problema de consciência mas de processos que se desencadeiam - ditaduras, guerras, soluções finais - que legitimam o horror, a libertação dos demónios que cidadãos aparentemente normais escondem dentro de si. O genocídio de 1994 decorreu num Ruanda profundamente cristianizado, com pleno conhecimento da comunidade internacional e sem que ninguém o impedisse, nem mesmo a Igreja. A matança ruandesa ensina-nos que não estamos protegidos nem pela cultura nem pela religião e que a barbárie está inscrita à flor da pele, à espera de um pretexto que a legitime." Freud considerava que a segunda origem da agressividade humana estava na frustração de desejos instintivos decorrente da civilização - o que afinal remetia para o "selvagismo" de Rousseau, que postulava o retorno à condição natural, tal como a dos selvagens e dos animais, mas também reconhecia que, sendo o homem um animal de presa, era a civilização que moderava a sua brutalidade. Então, lembramo-nos de que a brutalidade tanto existiu na matança das crianças que Herodes decretou para apanhar o Menino Jesus, como na Noite de S.Bartolomeu que a raínha católica Catarina de Médicis protagonizou para dizimar os huguenotes, como nas fogueiras da Inquisição para "limpar" o mundo dos hereges e dos infiéis, no genocídio do povo bochímane pelos "boers", na "solução final" dos campos de extermínio de Hitler, nos massacres da Bósnia, nos bombardeamentos americanos do Vietname e do Iraque, nas surtidas "cirúrgicas" de Israel, no ataque às Torres Gémeas de Nova Iorque ou à estação de Atocha em Madrid, etc.etc.etc. Voltaire, o Grande Cínico, que ironizava com a tese do "bom selvagem" de Rousseau, "lamentando" que, aos sessenta anos, já tivesse perdido o costume de andar a quatro pés e não lhe fosse possível retornar a ele, concluía, no seu Dicionário, sobre o "Homem": "São necessários vinte anos para trazer-se o homem do estado de planta, no qual existe no ventre materno, e do estado de animal, que é a sua condição na infância, ao estado em que a maturidade da razão começa a fazer-se sentir. Trinta séculos são precisos para se descobrir um pouco da sua estrutura física. Exigirá uma eternidade conhecer-se alguma coisa da sua alma." Se Voltaire adivinhasse o que, em matéria de barbárie, ocorreria pouco mais de dois séculos depois, sabendo que hutus e tutsis ou israelitas e palestinianos, enquanto "plantas", nasceram do mesmo ventre, certamente responderia a Rousseau: "Deixe os animais em paz: estes só matam quando têm fome ou são ameaçados. O único ser vivo que mata por instinto (veja-se o caçador desportivo ou o toureiro) é o homem." Mas o que Voltaire disse foi: "É proibido matar; por isso, punem-se os assassinos, a não ser quando matem em grande escala e ao toque de clarins." Primo Levi, a propósito do Holocausto, perguntava-se se a "solução final" nazi se devia explicar pelo desenvolvimento racional de um plano inumano ou por uma manifestação de loucura colectiva; se por uma lógica orientada para o mal ou por uma ausência de lógica. E respondia: tal como muitas vezes acontece nas coisas humanas, as duas possibilidades da alternativa coexistem. Um dos assassinos do Ruanda declarou: "Durante as matanças, não pensava em nenhuma particularidade da pessoa tutsi, salvo que ela devia ser suprimida. Devo precisar que desde o primeiro senhor que matei até ao último, nunca lamentei ninguém." Hatzfeld ouviu muitos outros matadores declararem coisa semelhante. Quem tivesse ouvido narrar, na nossa Televisão, as acções "naturais e descomplexadas" de alguns antigos guerrilheiros da UPA, sobre os massacres no Norte de Angola, e outras de jovens soldados americanos acusados de torturas na prisão de Abu Ghraib ou de velhos pides sobre as torturas inflingidas aos presos políticos, em Portugal e em África, - todos na mesma sintonia da indiferença, senão do desprezo, pela personalidade do Outro - talvez, sem saber nada de Freud, Voltaire ou Rousseau, reflectisse: "Afinal, se entre o Tempo da Bíblia e o das Catanas o gene humano da barbárie não mudou, só poderá salvar-se quem conseguir extirpar a Besta do seu interior, como se extrai um tumor maligno ou um dente podre." No actual contexto sociológico, onde a violência é uma componente do ar que se respira nas sociedades competitivas (pense-se nos hooligans e nos skin heads), convenhamos que é uma operação tão difícil como cauterizar o instinto do poder. Mas não é impossível. Fica essa esperança.
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