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Artur Portela ou a pequena história de um Portugal revisitado

Com Rama, Verdadeiramente, que foi reeditado em 1989, Artur Portela retomou ou regressou ao contacto dos leitores com um romance cuja história se desdobra na coincidência ou sobreposição dos factos,  frases e lugares, circulando a intriga narrativa em torno de três mulheres (Babel, Larice e Rama) e dando ao leitor a ?verdade? de certas ligações amorosas que desfilam ou passam no ?écran? da própria vida, por uma propositada e fina ironia, pela prosa repetidamente rebuscada para que se entre nesse jogo de relações e o leitor se sinta um elemento participativo da objectiva construção ou efabulação do romance. Como um empolgante jogo de espelhos, onde as relações se explicam pelas opções claramente assumidas na linhagem social do meio a que as personagens pertencem, Rama, Verdadeiramente valoriza o quotidiano em pequenas histórias e gestos, falas e referências, mas por entre a sua densidade narrativa ergue--se essa enigmática figura de Rama que os nossos olhos podem imaginar como se quiser. E assim nesse duplo propósito ficcionista, mesmo no excesso de pormenores, nos lugares da acção e determinação psicológica das personagens é um livro em que Artur Portela se impõe e vale a pena ser ainda lido muitos anos após a primeira edição e, sem se conhecerem ao certo as razões desse demorado silêncio, pude então dizer que a reedição de Rama, Verdadeiramente quase se entendia como um ?novo? livro de Artur Portela, talvez mais interessado em recuperar o seu lugar na ficção literária portuguesa.
Quando em 2002 publicou A Manobra de Valsasalva, uma sátira acerca do poder dos ?media?, da interactividade e da globalização, logo se percebeu que outros livros estariam na gaveta, como se passa com esta História Fantástica de António Portugal, agora publicado. 
Não se trata de um romance histórico, mas em que se faz a história breve de um Portugal revisitado ao longo de um século e a partir da morte (suicídio ou assassinato?) de Miguel Bombarda em vésperas do 5 de Outubro de 1910. Pelo sentido de grande ironia patente nas suas páginas, é um romance que redescobre as sombras que ainda pairam no nosso horizonte social e político, nos altos e baixos de uma caminhada colectiva e na forma ou na arte de ser português. Não que António Portugal, como protagonista, reinvente os lugares de martírio ou de suplício, mas porque nesta espécie de saga romanesca o que mais se ergue aos olhos do leitor é esse ?levantamento? histórico dos aspectos e factos mais marcantes da história recente de Portugal, ou seja, como diz o Autor, ?a vertigem modernista, a guerra de 14-18, os anos de chumbo do oliveirismo, com os seus três efes, o do fado, o do futebol e dessa outra terra do sol dançante, o solavanco do 25 de Abril, o segundo rotativismo, a parábola expectante de um país em prisão preventiva?.
Ora, ao desejar redescobrir o próprio País, no acto de percorrer um século de muitas misérias e poucas grandezas, Artur Portela, num modo propositadamente irónico e sarcástico, integra a fantasia na história e esta na fantasia, mas faz isso quase por puro divertimento, no rigor dos factos, sim, mas numa atitude que tem muito de conservadorismo, embora a sua escrita se afirme brilhante, mesmo quando se perde em aspectos de quem sobretudo quer determinar os contornos sociais, políticos e culturais da nossa identidade ou das falhas da nossa modernidade. António Portugal ergue-se, pois, como o ?ego? do próprio Autor, que tudo vê e critica, ou inventaria tão-só os aspectos narrativos que servem à intenção literária ou como forma de acentuar as contradições que o entendimento do passado e do presente deixam vislumbrar.
No plano desdobrado de sempre se descobrirem outros ?Portugal? nas páginas de História Fantástica de Antóno Portugal, este romance de Artur Portela não faz esquecer certos ?emperramentos? ou ?excessos? narrativos do romance anterior, mas denota uma agilidade estrutural que nos remete para outros livros do autor, não retira proveito das naturais coincidências históricas dos factos num intervalo de cem anos e perde-se por vezes em aspectos demasiado conhecidos ou já estudados e que não entram a tempo no tempo narrativo do romance, como o ?caso Alves dos Reis? e ainda as imagens da Rotunda ou de uma Lisboa republicana dos anos vinte que José Rodrigues Miguéis fixou com rigor e verdade em Páscoa Feliz ou nas histórias admiráveis de Léah.
Seja como for, no claro propósito de ser testemunha deste tempo português, Artur Portela ainda esboça um retrato panorâmico do País, no sentido de o reabilitar aos olhos do leitor e deixar entender que nada lhe passa ao lado ou à margem da sua posição de jornalista e intelectual, na forma de intervenção que desde sempre lhe é reconhecida. Mas isso não apaga, no plano criativo e ficcionista, os ?excessos? literários de uma escrita que se desejava mais desenvolta ou que, pela sátira e ironia, apresentasse um retrato mais ?verdadeiro? e menos?fantástico? deste País que está à míngua de pedir. Ontem como hoje, somos um ?país adiado?, que nem os ventos de Abril, passados já trinta anos, conseguiu corrigir. E por isso continuamos a ser, como diria Fernão Lopes, ?um povre povo queixoso? de tudo e que muito pouco faz para passar a ser um ?reino com emenda?.

Artur Portela
História Fantástica de António Portugal
Pub. Dom Quixote / Lisboa, 2004.


  
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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