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Fragmentos do quotidiano de vida das Ciências Socais (I)

? pretendo criticar um aspecto particular da nossa cultura profissional: o modo como não se faz debate intelectual e científico sério dentro da nossa comunidade.

Quem, como eu, faz parte de uma comunidade de investigadores e docentes das Ciências Sociais em Portugal, contribui inevitavelmente com a sua acção (queira ou não queira, com intenção ou por omissão) para uma cultura do nosso quotidiano, que socializa os mais novos no como fazer, no como pensar e no como estar em Ciências Sociais. A cultura do quotidiano desenvolve-se (de modo desigual) na interacção social entre pares, em co-presença ou à distância, nos espaços e tempos em que se desenvolve uma actividade que é específica e interna às Ciências Sociais. Refiro-me à interacção social  nos Centros de Investigação, nos Departamentos, nos Conselhos de Redacção de revistas científicas, nas associações científicas, nos Congressos e Conferências; nos júris de provas e concursos, etc. Neste texto, pretendo criticar um aspecto particular da nossa cultura profissional: o modo como não se faz debate intelectual e científico sério dentro da nossa comunidade.
Nos actos públicos que dão a conhecer os produtos científicos junto da comunidade respectiva (Congressos e seminários organizados pelas Associações disciplinares, pelos Centros de investigação e pelos Cursos Pós-Graduação) existe uma concepção de ?cultura espectáculo?, a saber: (1) os comunicantes falam cada um por si, muitas vezes com visões díspares, parecendo ser um sinal de ?má educação?  entrarem em confronto uns com os outros ou admitirem que discordam entre si; (2) os moderadores e comentadores parecem ser escolhidos com base no critério de serem  ?bons diplomatas?, sem nada de relevante para dizer; (3) há uma clara dicotomia entre quem fala e quem ouve, pois o tempo destinado aos comunicantes e aos participantes (mesmo quando é constituído por pares), é sempre desigual, e quase sempre uma caricatura de participação. Os ditos participantes, na sua maioria, seguem de perto o ritual: permanecem em silêncio; falam para elogiar para dizer que gostou ou para contar um episódio que julgam ilustrar o que foi dito; pedem desculpa por discordar, passando de seguida a contar mais um episódio que supostamente desmente o comunicante. As raras vezes em que parece haver confronto intelectual de ideias, tal facto é sempre descodificado pelos ouvintes como reflexo de lutas pessoais anteriores.
Vejamos, ainda, mais  três factos que reflectem esta nossa cultura profissional: provavelmente não são mais do que meia dúzia, os artigos de debate científico e confronto de ideias que nos últimos 25 anos foram publicados nas páginas das três ou quatro principais  revistas de Ciências Sociais existentes em Portugal; as recensões críticas de trabalhos científicos publicados editadas pela generalidade das revistas de Ciências Sociais, são pobres, pois são quase sempre estritamente informativas e descritivas, como se se tratassem de textos para jornais não especializados; os textos (quando existem) dos referee, que avaliam os artigos que são submetidos a apreciação para publicação nas revistas científicas, são demasiadas vezes  resumos generalistas, quase sem fundamentação e comentário desenvolvidos.
Face a este panorama é fácil perceber a enorme ansiedade em que se encontra a grande maioria dos aprendizes das Ciências Sociais quando publicamente são avaliados e têm que defender o seu pensamento perante júris de provas académicas.
Dirão alguns: não há tempo para nos dedicarmos a estas actividades de modo tão aprofundado. Resposta: de facto as actividades de debate intelectual (e suas ramificações) exigem tempo porque exigem preparação demorada e dedicação, mas é cada um de nós que gere uma parte do seu tempo. E no tempo disponível, que está ao nosso alcance, fazemos as escolhas mais fáceis e mais rendíveis para progressão na carreira universitária, mesmo em contradição com aquilo que declaramos em discurso como justo e que criticamos como errado nos outros.
Somos responsáveis (todos!) pela cultura profissional que ?fabricamos?. Não somos vítimas de estruturas inconscientes (um habitus científico?), nem de perversas hegemonias e interesses dominantes. Serão estas preocupações e críticas o reflexo de uma visão psicologista inspirada nas  "modas pós-modernas"[1]?

[1] Coloco esta pergunta porque num outro texto da minha autoria, com finalidades diversas, mas que manifestava o mesmo tipo de preocupações, quanto ao resultado cultural e político da interacção social,  foi comentado e qualificado por João Teixeira Lopes  como  ?psicologista?, embora reconhecendo a sua actualidade temática. Cf. Manifesto, nº3, 2003, pp.128-133.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

Telmo H. Caria
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, UTAD, Vila Real
Telmo H. Caria
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, UTAD, Vila Real

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