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Sacos de arroz contra a democracia

Não há democracia sem direito de escolha ou, se quisermos ser mais rigorosos, não há democracia sem direito de criação: não há democracia sem voto livre, não há voto livre sem  alternativas credíveis e não há alternativas credíveis se for cerceado o direito de criação.

Quatro mulheres, relativamente jovens e cheias de energia, presumivelmente cabo-verdianas, entraram no autocarro nº ?9? na Rua Alexandre Herculano, em Lisboa. Riam muito, falavam muito alto, e a determinada altura uma delas dizia:
?Eles fazem o que querem, mas antes das eleições dão uns sacos de arroz ao povo e o povo volta a votar neles.?
Depois, por qualquer razão, começaram a falar mais baixo. E eu, que já percebia mal o que diziam, deixei de perceber de todo. Mas aquela frase ficou a pairar por ali, e pelo menos na minha cabeça ficou a martelar baixinho, pois de uma forma muito simples aquela mulher tinha apontado um dos problemas centrais da democracia: a limitação da liberdade de escolha num cenário em que a liberdade formal de escolha continua a existir.
Os detractores da democracia servem-se de exemplos como este para a denegrirem: alguns para sustentarem a sua crença de que o povo nunca será tão capaz de governar como uma elite, e outros para sustentar a sua crença de que a democracia ?formal? não é uma verdadeira democracia. Se calhar têm ambos um pouco de razão mas, como sempre acontece, ter apenas parte de razão é... não ter razão.
Os defensores das elites dão-lhes mais importância nas situações de crise, quando o sistema democrático começa a ser inadequado para garantir a manutenção do poder nas mãos da burguesia reinante. Ora as elites existem sempre, e mal vão as sociedades que as não aproveitam no que de melhor tiverem para dar. Mas as elites de que estes senhores falam não são democráticas: são segregacionistas porque formadas dentro dos centros de excelência a que só os mais poderosos têm acesso. E essas elites conseguem sem dúvida criar mais riqueza, mas que é cada vez mais mal distribuída e associada a mais infelicidade para mais gente, como a história recente das experiências neoliberais abundantemente demonstra. As elites, para serem democráticas, têm que emanar de um povo culturalmente capaz de escolher os seus melhores, têm que ser compostas de gente excelente formada num ambiente onde haja uma distribuição democrática das liberdades e dos poderes. Mas dessas elites eles fogem, porque um tal modelo não é, pelos critérios de curto prazo que utilizam, e pelos critérios egoístas que sempre os acompanham, nada rentável.
Outros falam em democracia ?formal?, condenando-a. E têm razão, se se limitarem a condená-la por ser ?apenas? formal. O problema é que, ao criticá-la assim, quase sempre acabam por subvalorizar os aspectos formais da democracia e afirmar indirectamente que os fins são mais importantes que os meios. Só que os fins estão sempre embebidos nos meios, e por isso uma sociedade socialista só poderá ser alcançada se formos construindo socialismo, desde já, nas nossas acções de hoje. Tal como os meios estão sempre embebidos nos fins, pelo que uma organização que tenha um funcionamento interno não democrático só conseguirá construir ?não democracia?, por muito belos que sejam formalmente os seus ideais de futuro.
Não há democracia sem direito de escolha ou, se quisermos ser mais rigorosos, não há democracia sem direito de criação: não há democracia sem voto livre, não há voto livre sem  alternativas credíveis e não há alternativas credíveis se for cerceado o direito de criação. Que o digam os ditadores que amarram todos os criadores, sejam eles políticos, técnicos ou artistas. E o voto também só será verdadeiramente livre se houver um controlo democrático daquilo a que Chomsky, creio que citando alguém, já chamou de ?fabrico de consentimento?, que é um produto que sai a toda a hora da fábrica da ideologia dominante e que condiciona a opinião da maioria das pessoas, levando-as a escolher o que os poderosos querem que elas escolham mas mantendo a ilusão de que estão a fazer uma escolha livre e individual. Claro que tudo isto tem limites: em primeiro lugar porque ?maioria das pessoas? não é o mesmo que ?todas as pessoas?, e em segundo lugar porque todos os modelos têm crises, e chega-se sempre a um ponto em que não há propaganda que consiga convencer as pessoas de coisas que a realidade se encarrega de demonstrar que estão erradas. Mas, enquanto dura um ciclo, esta é sem dúvida uma das maiores perversões da democracia, precisamente porque simula de uma forma quase perfeita uma vida democrática que quase só se manifesta pelo voto, que é uma condição necessária mas não suficiente para a democracia.
A liberdade de opinião, de escolha, de criação, têm um valor em si mesmas: não têm apenas um valor instrumental, não são apenas um meio para chegar a um fim qualquer, que se pode dispensar quando alguém entende que pode atingir o mesmo fim sem elas. Sem democracia hoje, não será possível construir mais democracia amanhã, e socialismo muito menos. E os sacos de arroz, verdadeiros exemplos de ?fabrico de consentimento? para os mais pobres e excluídos, são, como os electrodomésticos que o Valentim Loureiro ofereceu na campanha eleitoral em Gondomar, uma afronta a qualquer futuro democrático. E portanto uma afronta a um futuro humanizado, ou seja, a um mundo viável e decente.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

Agostinho Santos Silva
Engenheiro. CTT.
Agostinho Santos Silva
Engenheiro. CTT.

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