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O meu pai foi combater os terroristas

A acção dos resistentes franceses ocupa metros e metros de corredores em todos os museus da costa normanda. Dois aspectos fundamentais se destacam: a audácia dos resistentes na sabotagem e destruição da máquina de guerra nazi e de tudo aquilo que lhe podia ser útil, como linhas de caminho‑de‑ferro e equipamentos de transporte, e a repressão implacável das tropas de ocupação

No verão passado passei uns dias na Normandia. No percurso pelas praias e outros lugares onde os jovens europeus e americanos se mataram em 1944, visitei alguns museus onde se encontram artefactos e documentos dos mais variados tipos sobre a ocupação da França. As peregrinações a estes espaços de fixação da memória são sempre úteis para a compreensão do nosso presente, nomeadamente dos discursos dominantes produzidos por quem tem força para os tornar dominantes.
A acção dos resistentes franceses ocupa metros e metros de corredores em todos os museus da costa normanda. Dois aspectos fundamentais se destacam: a audácia dos resistentes na sabotagem e destruição da máquina de guerra nazi e de tudo aquilo que lhe podia ser útil, como linhas de caminho‑de‑ferro e equipamentos de transporte, e a repressão implacável das tropas de ocupação.
Não pude evitar comparar a luta da resistência francesa com aquela que os iraquianos travam contra a ocupação do seu país pelo exército americano e seus comparsas. Em ambos, nazis e americanos, o mesmo discurso: os combatentes patriotas são terroristas, todos os que colaboram ou manifestam simpatia para com eles e suas acções são cúmplices, merecendo igual punição: a eliminação física, o fuzilamento legalizado pelo direito nazi, o sinistro ?dead or alive? do Bush, os campos de concentração e de trabalho forçado, a prisão de Abu Ghraib.
Ainda que legitimada pelo direito internacional, na sequência de um compromisso precário e cínico entre diferentes blocos estatais em concorrência, ao velho estilo colonial, a ocupação do Iraque continua. Às forças de ocupação comandadas pelos americanos respondem os iraquianos com a federação de uma constelação de grupos motivados por filiações étnicas, políticas e religiosas muito heterogéneas. Tal como na resistência francesa, em comum praticamente apenas a causa nacional, a luta sem tréguas contra o invasor. Feita de acordo com a sua visão e modo de olhar o mundo, a vida e a morte, circunstâncias e possibilidades. Só faltava, de facto, exigir a estes homens e mulheres que lutassem de acordo com as regras ditadas pelo ocupante, que, a bem dizer, se recusa a submeter a qualquer regra. Como justamente lembra Pierre Conesa, na edição de Junho do Le Monde Diplomatique, a propósito da resistência palestianiana, os atentados suicidas são a derradeira opção para quem não tem, como opção, tanques, mísseis, bombas ?inteligentes?, aviões e helicópteros.    
Neste drama infame em que transformaram o Iraque, por lá passaram ou se vão mantendo, de livre vontade e conivência ideológica, um punhado de mercenários com passaporte português, mais uma centena de homens e mulheres transformados nessa condição por força das circunstâncias. Isto é, jovens despolitizados, carne para canhão dos interesses imperiais, filhos do proletariado e de outras classes trabalhadoras que correm para o Iraque sonhando com a casa, o carro e até os estudos para os filhos que o desemprego ou os salários de miséria impostos pelo neoliberalismo não lhes permite concretizar em Portugal.
Aos conscritos pelo direito que fizeram a guerra colonial, temos agora os conscritos por necessidade. Em uns e outros imaginamos facilmente a mesma retórica discursiva, o mesmo sentido que o poder tem de incorporar nas cabeças dos que partem e, sobretudo, dos que ficam, dos que lhes são próximos, das mulheres que desejam e dos filhos que anunciam a colegas e amigos: o meu pai foi combater os terroristas.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves
Fernando Bessa Ribeiro
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Pólo de Chaves

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