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Afinal onde está a escola?

Fora  da escola também se aprende

Organizei em 1988 um seminário com o título: «Afinal onde está a escola?». Queríamos saber o que se aprende, onde se aprende e como se aprende.
Dizem que se aprende na escola. Mas quem decide o que nela se aprende?
E o que aprende e como aprende cada um dos que a frequenta? Fora da escola também se aprende. E que interacções se estabelecem entre as aprendizagens de fora e de dentro da escola? E será que a escola é capaz de ensinar alguma coisa que as aprendizagens adquiridas fora da escola se recusem a aprender?
Continuamos interessados em saber o que cada pessoa e cada grupo social aprende fora da escola, com a família, os vizinhos, os grupos de amigos e em tantos outros lugares como a rua, o autocarro, o café, a televisão, a fábrica, a internet, a rádio, o cinema, o jornal, o teatro, numa palavra, nesse lugar a que chamo a Praça da República, o lugar das aprendizagens extra-escolares. E queremos saber como estas aprendizagens condicionam as aprendizagens escolares. Suspeitamos que a escola não é o centro das aprendizagens mais significativas e se-lo-á  cada vez menos numa perspectiva de educação ao longo da vida.
Preocupados com estas problemáticas colaboram com o jornal a PÁGINA vários grupos de investigação e de escrita. O primeiro, na Universidade Federal Fluminense no Rio de Janeiro, sob coordenação da Regina Leite Garcia, investiga sobre «alfabetização das classes populares». Escreve a rubrica «Afinal onde está a escola?». Nela procuram mostrar como é que a cultura das classes populares ? saber aprendido fora da escola ? se reflecte na escola e desafia as práticas desta. O segundo, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a coordenação da Nilda Alves, investiga sobre as «redes de conhecimento em  educação e comunicação: questões de cidadania». Escreve a rubrica «Fora da escola também se aprende». Nela se procura entender o que se aprende fora da escola. Como o espaço público e as famílias se organizam em redes de educação informal e o modo como estas redes e a rede escolar permitem tecer as redes de conhecimento que podem ajudar a desenvolver uma sociedade cidadã ou solidária.
Em Outubro surgiu uma outra rubrica ? Cultura e pedagogia ?, alimentada por um terceiro grupo de investigação. Também com sede no Brasil. Desta vez em Portalegre. Na Universidade do Rio Grande do Sul. Coordena a Marisa Vorraber Costa. Investigam e escrevem sobre o modo como a cultura, ou as culturas, interagem com as aprendizagem escolares. Interessa-lhes saber como as ideologias, a cultura dos meios de comunicação social, os discursos políticos, ou a produção de artefactos, como a Barbie ou os jogos virtuais, interferem no processo de formação do conhecimento das crianças, dos jovens e das pessoas em geral e como tudo isto se reflecte na escola e desafia as práticas pedagógicas.
Neste ano lectivo, a Isabel Baptista, da Universidade Católica, e o Adalberto Dias de Carvalho, da Universidade do Porto, abriram a rubrica «Cidade educadora». Nela procuram mostrar as relações entre a pedagogia, a educação social e o trabalho social.
Estas referências servem para dar ênfase à preocupação da PÁGINA sobre o como, o que e onde se aprende. Reforçam a ideia que nada se entende da escola se não se entender a sociedade em que ela se insere.
Sempre se aprendeu em vários lugares. A primeira cultura dos indivíduos ? determinante no modo como se fazem as aprendizagens posteriores ? é a da família. A escola sempre foi apenas o lugar de algumas aprendizagens  formais. Lugar a que nem sempre teve acesso toda a população. Espaço de sucesso para uns e de tragédia para outros. Ao contrário da Praça da República, a escola é um espaço homogéneo organizado e pensado para servir a cultura e os interesses dos grupos socialmente mais reconhecidos. Conforme a cultura herdada da família, uns alunos sentem-se na escola como peixe na água e outros como peixe abandonado na areia.
 A escola discrimina e não responde a todos da mesma maneira. Ela serve melhor as crianças e os jovens dos grupos com maior reconhecimento social. Está pensada e organizada em função destes.
A discriminação é ainda mais violenta porque os alunos socialmente desfavorecidos, também fora da escola têm menos oportunidades de aprendizagem. O seu meio social ? a sua Praça da República ? é educacionalmente mais pobre. Os recursos educativos a que têm acesso fora da escola são escassos. A sua família e a Praça que frequentam estão culturalmente desarmadas face aos desafios da cultura imposta pela escola. O que sabem, mesmo quando é muito, não é reconhecido como saber pelo currículo e avaliação escolar. Esta realidade, torna mais premente o investimento nas famílias, na educação de adultos e nas redes comunitárias de educação social e informal.
Acreditar que se combate o abandono e o insucesso escolares, se responde aos excluídos, e se eleva a qualidade do ensino, intervindo apenas no interior da escola, é uma ilusão. Para vencer estes problemas é necessário adoptar políticas sociais que tenham a educação como fulcro da acção.
Os fracos resultados da nossa escola estão relacionados com o atraso do nível educacional da sociedade portuguesa. Não há milagres. As aprendizagens exteriores à escola ? e indispensáveis ao trabalho desta ? são, entre nós, paupérrimas. As nossas comunidades ainda são desertos culturais e educacionais. É em estruturas e actividades promovidas pelos municípios que se deve fazer a grande aposta educativa capaz de superar o atraso educacional da maioria da população portuguesa.
O mais importante não é termos os autarcas a intervir na actividade das escolas. O que eles devem é preocupar-se em dotar os seus municípios de equipamentos educativos, criando redes de educação social e de lazer. As sociedades avançadas exigem muito mais do que o velho sistema regular de ensino. A sociedade de hoje precisa de um sistema educativo que resulte do entrelaçamento do sistema escolar com o sistema de educação social e informal. A organização do espaço público, onde vive cada um de nós, deve permitir que nele se aprenda com naturalidade. São precisos espaços para o desporto, a dança, a música, o teatro, a leitura, o lazer, o debate, a discussão de problemas sociais como a droga, a SIDA, a prevenção rodoviária, a educação sexual, o planeamento familiar e tantos outros. Demos à escola a responsabilidade da educação escolar. E à comunidade o lazer e o desenvolvimento da educação social e informal.
Criemos aldeias, vilas e cidades educadoras. Contratemos para animar esses espaços de lazer e de educação social e informal, muitos dos professores com vontade de trabalhar e que permanecem inútil e dramaticamente no desemprego. Chamemos ao trabalho os professores, os actores, os músicos, os animadores, os pintores e tanta outra gente qualificada e, desgraçadamente, desempregada.
Exija-se à comunicação social que cumpra «serviços mínimos educativos». Reserve-se a escola para as aprendizagens escolares. Não se atire lá para dentro com o que se deve aprender cá fora. Faça-se da escola apenas um nó ? ainda que fundamental ? da rede nacional de aprendizagem. Coloque-se a educação no coração da vida comunitária. Criem-se comunidades educadoras. Assuma-se o objectivo de elevar o nível educativo do povo português e, talvez assim, o nosso sistema escolar ganhe condições para melhorar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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