Entrevista com Milica Ribeiro dos SantosFalar dos internatos em Portugal é abordar uma realidade desconhecida para a maioria da opinião pública. Uma realidade feita de silêncios, de jogos de poder e de situações menos claras que importará denunciar. Milice Ribeiro Santos, psicóloga, professora coordenadora na Escola Superior de Educação do Porto e investigadora na área da Psicologia da Educação e da Família, fala-nos da sua experiência de investigação, critica o papel passivo do Estado nesta área e defende uma nova abordagem na educação das crianças e jovens abrangidas por este sub-sistema da Segurança Social. Quando aparecem os internatos em Portugal e qual o papel do Estado na sua criação?
A resposta social às crianças em situação de abandono, orfandade e miséria tem sido o internamento. Desde a Idade Média que existem instituições para meninos e recolhimentos femininos de iniciativa régia. Há posteriores referências às Rodas de Expostos de cariz municipal e, nos séculos XVIII e XIX, por todo o país, mas com particular incidência no norte, surgem os asilos. A história destas instituições relaciona-se com os problemas criados pelas invasões francesas, pela industrialização e pelos fluxos populacionais dos meios rurais para as grandes cidades. Muitos destes asilos foram criados por ordens religiosas e por pessoas beneméritas com objectivos de proteger e moralizar. O salazarismo, louvando a caridade como solução para os graves casos sociais, estimulou as doações de beneméritos a obras religiosas. Embora a Lei de Assistência Social, existente nessa época, previsse a colocação familiar e o subsídio às famílias a resposta foi primordialmente a institucionalização das crianças e jovens.
Qual é o enquadramento legal dos internatos em Portugal?
O enquadramento legal dos internatos em Portugal resulta da produção de uma legislação que não se encontra implementada. O actual conjunto de leis deve-se ao anterior executivo socialista, mas elas acabaram por ficar no papel ou constituíram apenas indicações gerais. Pode dizer-se que houve a intenção mas não a capacidade política para fazer agir essa legislação. Neste sentido, parece-me importante referir que houve um vazio legal sobre esta matéria durante décadas. Inclusivamente, no pós 25 de Abril - apesar dos movimentos cívicos e reivindicativos dessa altura -, esta questão não foi suficientemente valorizada, pelo que muitas destas instituições aproveitaram para fazer apenas mudanças de fachada de modo a continuarem na mesma e sem serem encerradas pelo poder político, pelos novos valores cívicos. No norte do país, onde o peso da igreja católica é maior, estas instituições conseguiram manter-se praticamente sem nada alterar. Nestes 30 anos, os internatos que, na sua maioria dependem da iniciativa privada, ganharam importância legal pela função supletiva do Estado, integrando-se nas IPSS (instituições privadas de solidariedade social) com quem o Estado estabelece protocolos disponibilizando apoio financeiro e técnico. De acordo com números oficiais existem perto de quinze mil crianças e jovens em Portugal em regime de internato, o que constitui, mesmo em termos absolutos, o maior número na União Europeia. Como se chega a uma situação destas?
São crianças colocadas pela segurança social, pelo tribunal ou cujo pedido foi directamente feito pelas famílias. Abrange situações de risco, de negligência, de exclusão, de abandono. As situações de dupla orfandade são hoje mais raras. Saliento o facto de Portugal continuar a ser um país com situações extremas de pobreza e de as leis de protecção e de direitos das crianças terem surgido mais tarde do que na maioria dos restantes países europeus. Portanto, na ausência de um quadro legislativo e organizativo eficiente de protecção de menores, como não existem onde receber crianças nos momentos de emergência, as instituições religiosas impuseram-se, oferecendo a ilusão de constituirem uma resposta. A igreja católica precisa destas instituições como forma de sobreviver enquanto instituição caritativa, sendo esta uma das funções que, para o bem e para o mal, tem exercido. É um dado conhecido que as crianças quanto mais novas são institucionalizadas mais anos lá ficam. Facto que, no entanto, pode começar a mudar com a nova legislação da adopção. Na maioria das vezes, não se faz um trabalho com as famílias de forma a mudarem as condições e as crianças não regressam a casa.
Sendo o Estado laico e responsável primeiro por estas crianças e jovens, porquê entregá-las ao cuidado de instituições de inspiração religiosa, com valores e práticas certamente diferentes daqueles que orientam as escolas públicas?
Eu admito que possam existir internatos dependentes de instituições religiosas numa perspectiva de uma sociedade plural, mas não admito que sirvam como solução para resolver os problemas sociais do país. O Estado recorre a estas instituições porque ele próprio não oferece alternativas e nem avalia de forma séria os problemas existentes no país nem os recursos e as soluções. O internamento pode ser justificável num contexto temporário, de crise, mas o fundamental é procurarem-se alternativas, tais como uma família de acolhimento ou um famíliar a quem é atribuído um subsídio. Nalgumas situações de pobreza o montante que a segurança social paga aos internatos, por cada criança será suficiente para as famílias as poderem guardar. Na procura de alternativas ao internamento podem organizar-se alojamentos em pequenos apartamentos com técnicos que habitem conjuntamente ou, para os mais velhos, privilegiar locais habitacionais como residências universitárias. Na Holanda, por exemplo, as autarquias reservam um número determinado de apartamentos para estudantes, para pessoas em visitas de estudo ou para situações de emergência social como estas. Assim, a inserção social acaba por ser facilitada pelo próprio viver e habitar o tecido urbano. Temos de admitir que a actual realidade dos internatos em Portugal decorre da incapacidade de criar respostas alternativas, o que não exigiria mais dinheiro ao Estado.
Conduziu um estudo sobre este tema para a sua tese de mestrado - intitulado "Crescer mulher entre mulheres ? estudo sobre o desenvolvimento da identidade sexual de adolescentes vivendo num internato feminino" - que lhe deu oportunidade de conhecer esta realidade com rigor mas que também a marcou particularmente?
Acho que me marcou de uma forma muito forte porque me prendi às histórias reais das crianças e dos jovens que conheci e porque senti uma profunda revolta social contra situações que considero indignas, injustas e inaceitáveis. A minha investigação, desenvolveu-se partindo da animação de uma sala de jogo, ao longo de seis meses, com uma metodologia de observação participante. Conheci o dia-a-dia, senti o cheiro, confrontei-me com os rituais, a rigidez dos horário que leva jovens a levantarem-se muito cedo, mesmo que não tenham aulas, a aridez relacional, a tristeza que as invadia, compreendi o que é não ter direitos mas só deveres e obrigações, ouvi uma narrativa negativista e fatalista, observei a frieza dos grandes dormitórios, entendi como se fazem bodes expiatórios, como se alicerçam coligações, como se desvalorizam as pessoas, descobri a violência simbólica que submerge no quotidiano.
Porquê esse encerramento das instituições de internamento sobre elas próprias?
Porque só dessa forma elas conseguem sobreviver. Faz parte da própria noção de instituição totalitária manter normas e regras que vão contra os valores de justiça e de socialização exigidos pela sociedade. Só fechadas sobre elas próprias conseguem desenvolver uma ligação patológica que permite, entre outras coisas, o inculcar de um sentimento de culpabilização. É preciso não esquecer que muitas destas crianças vivem estados de depressividade e de culpabilização (sentem-se culpadas por serem órfãs, por os pais as terem abandonado, pelo que devem estar agradecidas à instituição que as acolhe), apresentam frequentemente comportamentos agressivos. Apesar de admitir que as minhas afirmações possam causar alguma polémica, digo que existem nestas instituições muitas pessoas amarguradas, gélidas, más, algumas profundamente perversas que inculcam valores baseados na aceitação do sofrimento, da subserviência, na distância afectiva e num contexto tão rigido que não torna possível uma comunicação centrada no respeito e no direito à felicidade.
Os projectos educativos dessas instituições não deveriam corresponder aos princípios que orientam os projectos educativos das escolas públicas, na medida em que é o Estado que as tutela?
Esse paralelismo deveria existir, seria o mais lógico, mas um dos maiores problemas é que a maioria destas instituições não são tuteladas pelo Estado. Se o projecto educativo depende exclusivamente da instituição, ela irá conduzi-lo ancorado nos valores que ela própria defende. Sublinho que algumas destas instituições mantêm escolas no seu interior e que nas situações em que estas crianças frequentam as escolas públicas, com outras regras e valores, algumas não conseguem adaptar-se.
Este era um dos pontos previstos na legislação do executivo socialista, que referiu no princípio da entrevista?
Sim, um dos objectivos dessa legislação era fornecer directivas para implementar um modelo de projecto educativo que valorizasse a educação para a autonomia e promovesse uma socialização em valores contemporâneos. Não se pode esquecer que estas crianças precisam, mais ainda que as outras, de serem educadas num processo de socialização aberto, num clima de autonomia e solidariedade porque irão, provavelmente, ser menos protegidas pela família ao longo da vida e terão de se adaptar a uma sociedade em mudança, devendo beneficiar de uma educação mais flexível, criativa e centrada nas competências pessoais. Ora, é exactamente o oposto disto que se verifica. Parece-me importante que, dado os sofrimentos vividos, estas crianças e jovens possam ser escutadas e apoiadas na compreensão de si e das ocorrências da vida, possam fazer os seus lutos num espaço contentor das amarguras e das dificuldades, possam sonhar e abrir horizontes com confiança pessoal e com confiança social. Assim, a existência de uma equipa técnica com condições de trabalho e de reflexão parece-me imprescindível.
Que medidas preconiza para alterar este modelo de funcionamento dos internatos?
A instituição tem que se responsabilizar pelo percurso de cada criança respeitante à formação, redes de sociabilidades, inserção social e projecto profissional, estabelecendo um projecto de vida para cada criança, avaliado no final de cada ano. A segurança social, por seu lado, podia organizar redes de sociabilidade que permitissem a cada criança ter pontos de referência e retaguardas afectivas estáveis, já que muitas delas são deslocadas do seu meio de origem e vêm para lugares, por vezes, distantes e desconhecidos. Deixaria, neste sentido, algumas ideias soltas acerca da humanização destes espaços de vida: organização em pequenos núcleos habitacionais; condições facilitadoras de relacionamentos interpessoais satisfatórios; existência de espaços de intimidade e de privacidade; regulamento onde estejam expressos e compreendidos direitos e deveres; divulgação em lugar acessível do plano de actividades; garantia de mecanismos de gestão democratica e participada; limitação dos mandatos para a direcção; existência de um tutor; equipa técnica com homens e mulheres; implicar os residentes na vida conjunta. Será também necessário promover encontros e formações para as pessoas que aí trabalham onde se consciencializem e se adquiram conhecimentos sobre as necessidades desenvolvimentistas das crianças e jovens, se desenhem projectos e se perspectivem estratégias, se confrontem opiniões, se construam narrativas positivas, se divulgam experiências inovadoras.
Conhece exemplos positivos que pudessem servir de exemplo?
Conheço alguns em Espanha e em Portugal. Nomeadamente, os recentes Centros de Atendimento Temporário, pois apesar de serem instituições com funções um pouco diferentes, podem servir como experiências ilustrativas. Tive a esperança que o problema em torno do abuso sexual de crianças na Casa Pia de Lisboa levasse a reflectir sobre as condições de vida destas crianças e jovens e como são as próprias condições instituicionais que produzem, mantêm e ocultam situações indignas. Enganei-me.
Refere no seu trabalho que a excessiva regulamentação, disciplina e mesmo o facto de, na sua maioria, estas instituições terem uma frequência unissexual, dificulta o processo de identização e o próprio amadurecimento sexual dos jovens, o que potencia, na sua opinião, situações de exploração sexual como aconteceu recentemente em torno da Casa Pia de Lisboa. Em que medida podem estas condições favorecer crimes de abuso sexual?
Por um lado, a marginalização e o isolamento social dos internatos constituem um tecido propício a essas situações, por outro lado, como o processo educativo é baseado em regras contrárias à autonomia e aos direitos, facilmente as crianças e jovens se podem tornar vítimas. A falta de auto-estima, de assertividade e de hábitos de tomadas de decisão torna-as vítimas fáceis de adultos e de comportamentos perturbantes. Relevo o facto de as crianças e jovens não terem uma educação sexual saudável, não aprenderem o direito a dizer ?não?, não conhecerem o corpo, não verem a sexualidade como uma energia positiva na sua vida. Pelo contrário, associam muito facilmente a sexualidade ao pecado, ao nojo e ao mal. É preciso não esquecer que o passado de muitas destas crianças está ligada a situações de exploração e de violência sexuais. O abuso sexual é um problema individual e colectivo. As crianças e jovens, e os adultos, devem conhecer a legislação, os direitos e as obrigações do abuso como crime público, ter informação sobre os organismos e os números de telefones a que possam recorrer e terem adultos amigos que os possam ajudar.
Qual é a entidade que fiscaliza estas instituições e de que forma a conduz?
De facto, o Estado, pela responsabilidade que tem perante os seus cidadãos, tem a obrigação de fiscalizar as instituições que tutela, aquelas com que tem protocolo de cooperação e todas as existentes que alberguem crianças. Uma fiscalização que não poderá cingir-se a questões administrativas, mas pelo contrário, incidir sobre a qualidade, sobre o projecto educativo, pedagógico e social. Devem ser implementados dispositivos de controlo social como as avaliações externas e internas e introduzidas as transformações evidenciadas. Se houvesse vontade política, a existência de equipas multidisciplinares poderia servir para avaliar e propiciar um acompanhamento sociopedagógico a estas instituições. A responsabilidade estatal deve dialogar com a responsabilidade civil envolvendo os movimentos sociais e associativos bem como as autarquias.
Será que o poder da igreja em Portugal, ao qual se tem vindo a referir, não contribuirá para encobrir muitos desses casos?
Evidentemente que sim, a igreja católica não está habituada a prestar provas. Essa questão é muito pertinente na medida em que, de facto, se verificam situações incompreensíveis. É difícil entender, por exemplo, como algumas instituições sobre as quais são denunciados autênticos escândalos continuam a funcionar durante tantos anos. É o caso de uma instituição situada no norte do país - que não irei nomear - que há vários anos teve queixas por parte da escola e dos professores, da segurança social, da autarquia e dos próprios pais. Houve médicos que inclusivamente denunciaram situações de avitaminose e a única coisa que foi feita na altura foi melhorar a sopa! Numa outra instituição, localizada na cidade do Porto, nos dias de hoje, vivem-se situações que não se distanciam muito da escravatura. No entanto, também ela consegue manter-se em funcionamento apesar de muito ter sido feita para denunciar este escândalo. Um GRIIITO abafadoEm 1983, a Milice e um grupo que reunia mais catorze pessoas criaram o Grupo de Reflexão e Intervenção em Instituções Tutelares e Orfanatos (GRIIITO). Qual era o âmbito de intervenção desse grupo?
O objectivo da criação do GRIIITO era o de denunciar publicamente o que se passava em algumas destas instituições, já que tínhamos consciência de que a opinião pública as desconhecia, e intervir junto das entidades responsáveis para transformar estas situações gritantes. Para realizar esse trabalho tivemos de ser nós próprios a fazer investigação porque não havia dados centralizados e a própria Segurança Social não nos sabia dar respostas concretas. Aliás, só há menos de cinco anos é que se sabe o número total de crianças internadas nestas instituições em Portugal e não há, de facto, um estudo sério nem sobre as crianças nem sobre estas instituições.
Que resultados práticos obtiveram a partir dessas denúncias?
Na altura apresentamos queixas públicas junto do Curador de Menores, na Assembleia da República, nos Tribunais, na Segurança Social e denunciamos a situação nos órgãos de comunicação social. Os resultados não foram nada satisfatórios. Pode dizer-se que obtivemos algumas e pequenas melhorias em instituições - para as quais nos oferecemos para fazer formação em regime de voluntariado. Todavia, julgo que a principal vitória foi o facto de a Tutoria do Porto ter acabado com uma cela de isolamento existente com condições desumanas, perfeitamente deploráveis. Mas devo admitir que foi muito pouco em relação ao nosso investimento. Reinava o medo e as denúncias eram tão difíceis que mesmo pessoas com responsabilidades profissionais directas nos contactavam, em segredo, e nos indicavam situações que deveriam ser denunciadas. Nessa altura chegamos inclusivamente a recear pela nossa segurança, de tal forma nos tornamos incómodos.
O que aconteceu ao GRIIITO?
Com tanta energia dispendida e tão poucos resultados obtidos, não tivemos força anímica e física para continuar esta tarefa. Continuamos a interessar-nos por este problema, mas não como grupo activo. Duas de nós - incluindo eu própria - fizemos a tese de mestrado sobre esta área e outra companheira abordou temas que focavam esta problemática no seu trabalho de final de curso. Esta luta continua premente, por isso, são precisos mais griiitos. Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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