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Facilitismos (I)

Encontrei num jornal uma tomada de posição de uma associação de famílias com muitos catraios. Compreendi o drama dos únicos que podem entender o largo alcance da ministerial ideia de retomar os exames na quarta classe. Lamento não poder apresentar proposta de sócio, por ser pai de filho único, pelo que me resta apoiar a instituição com algumas despretensiosas sugestões.
Eu nem imagino o que é ter onze, doze, ou treze catraios para criar. Presumo que seja bem difícil para os fecundos autores de tão vasta prole fixar as datas de todos os aniversários e etariamente ordenar os catraios. Que nisso da ordenação, a mãe Natureza sabe o que faz e melhor que ninguém, estes incansáveis progenitores compreenderão o drama escolar. Quem não tem unhas não toca guitarra, e é preciso seleccionar, ordenar, pôr cada macaco no seu galho. Aquela mania de mandar toda a gente à escola, como se todos fossem limpinhos e espertos, logo se viu que nunca poderia dar bom resultado. Nem todos podem dar doutores. Há que apartar as águas e despachar a Tininha que já tem bom corpo para trabalhar e só está para ali a estragar a turma. Não nos iludamos com o aspecto, que o calmeirão com ar de já poder ser pai pode muito bem ser mais novo que o enfezado que ocupa o primeiro lugar na fila dos bons. E, vice-versa. Deixemo-nos de modas e venham os exames. Nada de facilitismos! Rigor, meus senhores! Rigor acima de tudo!
Agora, parece que a gente já não sabe ensinar. Até agora, ninguém nos pedia mais do que dar um dez ou um oito, um satisfaz ou um suficiente menos. E o que é que eu faço ao grupo dos "atrasados"? Sem exames, é impossível separar o bom do ruim. Que fazer do puto ranhoso que, no fim do segundo período, ainda não distingue um p de um t? Vai andar manco o tempo todo, no fundo da sala, a escrever filinhas de tês e de pês? A lei manda que o aluno não pode ser reprovado no primeiro ano, que devem passar todos para o segundo, mesmo que haja alguns que não leiam uma letra do tamanho de um carro. Pois, cá por mim, nem se deveria esperar pelo fim do ano. Vou mais longe, proponho que sejam feitos exames semestrais. Aluno que não aprenda a ler até à Páscoa, chumbo nele!
Aliás, se eu mandasse, haveria exames logo no acesso à primeira classe. Os que não passassem ficariam no Jardim de Infância. Sim, porque ninguém está livre ? e ainda, para mais, as famílias numerosas ? de lhe calhar na rifa um puto que (como dizem os especialistas especialmente especializados em educação especial) tenha dois ou três anos de atraso. E o que é que eles vão fazer para a escola?
É lógico que compete às famílias impor critérios de selecção eficientes. Eu explico como se pode evitar situações de embaraço por altura do exame de acesso ao Jardim de Infância. Quando estiver a chegar o dia de o catraio fazer três anitos, deverá fazer-se um exame de competências linguísticas. Imaginemos que o catraio ainda não fala na perfeição. Não terá direito à festinha dos três anos. Fará dois, pelo que as velas postas no bolinho não devem prestar-se a equívocos. Se chegar aos dois anos e ainda não conseguir andar pelo seu pé, não haverá segundo aniversário. Repetir-se-á o primeiro com velinha no bolo a condizer.
Recapitulando e a bem da nação: saia uma lei que obrigue a exame de acesso à creche e exame de acesso à escola básica. Se o pimpolho não revelar possuir os requisitos para a frequência do primeiro ano, deverá celebrar, não o seu sexto ano de vida, mas o quinto, o quarto, podendo mesmo encarar-se a possibilidade de ficar retido em idade mais precoce, fazendo anos em conformidade. Se, quando chegar à idade de cumprir o serviço militar, por via de sucessivas reprovações, o mancebo manifestar competências próprias de um púbere, não fará 21 anos, nem talvez 18 ? soprará, por exemplo, as velas do seu décimo aniversário oficial. E por aí adiante?
Agora, falando sério: carente de assunto, o ministério deu em inventar fait divers, para gáudio dos opinion makers habituais que, boçalmente, discorrem sobre educação. Está no seu direito. Para alguma coisa é ministério.
Como diria o Iturra: ?Na vertigem das reformas educativas dos últimos cem anos em Portugal, a memória transmitida é a abstracção escrita de um saber variável que não condiz com o quotidiano em que viveu uma parte da população, que se identifica melhor com a sua própria memória oral como fonte de conhecimento (...) A cultura letrada que organiza o ensino não tem sido capaz de romper com o modelo imperante de eficácia económica e incorporar a prática social como mediadora entre o saber da experiência controlada e o saber que provém da experiência provada?.
Qualquer pessoa minimamente avisada, minimamente conhecedora dos ainda ocultos saberes das ciências da educação ? bode expiatório de todos os males que apoquentam a educação deste país ? sabe que a solução não passa por haver mais exames. Sabê-lo-á o senhor ministro?


  
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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