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Samira Makhmalbaf: O outro lado da mulher iraniana

Samira Makhmalbaf nasceu em Teerão a 15 de Fevereiro de 1980. Com 7 anos, estreou-se no cinema no filme do seu pai, Mohsen Makhmalbaf, ?O Ciclista?, conhecido entre nós pelo belíssimo ?Gabbeh?- uma das minhas paixões ? e ?Kandahar?. Abandonou a escola aos 14 anos, para aprender cinema. Com 17, depois de ter dirigido dois vídeos, começou a rodagem de ?A Maçã?. É a história de um pai que fecha duas filhas em casa desde a idade de dois anos, até os vizinhos as conseguirem libertar, onze anos mais tarde. Concebido como um documentário para Samira poder fazer pesquisas nas ruas e tornar possível as mulheres poderem actuar nas ruas que no caso de um filme de ficção lhes estava interdito. Em 2000, com 20 anos, realiza o filme que lhe vai trazer o reconhecimento internacional ?O Quadro Negro?, que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes. Lembram-se do ?trailer?, em que se via a cerimónia da atribuição de prémios, quando a chamam aparece uma figurinha de que se via apenas um rosto envolto em panos?
Conta (todas as palavras de Samira Makhmalbaf foram retiradas de uma entrevista publicada no Finantial Times de 3 de Abril), que o seu pai a acordava às 3 da manhã dizendo: ?Se queres aprender cinema, tens de acordar agora.? Enquanto estava a montar um novo filme, amigos vinham vê-lo trabalhar. ?Ele acordava-me, abria-me os olhos e deixava-me ver. E às vezes perguntava-me: ? Qual das filmagens de cena é melhor??. E às vezes quando queria voltar para a cama dizia : ?Oh! Esta. Mas ele estava sempre a verificar se eu realmente gostava de cinema? .Com pais destes quem precisa de escolas de cinema?
O seu último filme ? Ás cinco da tarde ?, é passado no Afeganistão, ?quis falar desta nação porque neste momento eles não têm ninguém que o faça. Ouvimos a voz dos políticos, mas não a do povo. Penso que o Afeganistão está a sofrer de várias coisas, não apenas dos Taliban mas também da história passada, das gerações anteriores. Este atraso, este desespero, não é uma ferida externa ou um abcesso, que se possa lancetar. É mais como um cancro.? Mas como ela refere ?é também uma  história do  Irão, e de outras culturas e países Orientais. Mas tento não julgar nem censurar. Por exemplo o velho (o pai da protagonista) é um símbolo das gerações anteriores que acreditaram e apoiaram os Taliban. Mas não o odiamos, até sentimos alguma simpatia por ele. Quis ver as coisas em termos humanos, não a preto e branco.?
Sendo mulher e tendo uma profissão que mesmo no Ocidente é praticamente masculina - digam-me rapidamente o nome de três realizadoras-  não deve ser bem vista . ?Há dois tipos de limitações, as escritas e as não escritas. Uma lei escrita contra mulheres realizadoras, no Irão, não existe. Mas na cabeça das pessoas, mesmo na Europa, as mulheres não são realizadoras, com excepções para confirmar a regra. Lembro-me que quando fiz ?A Maçã? as pessoas no estrangeiro diziam: ?Não percebo que género de país é o Irão. É o país onde as pessoas são perseguidas e presas por falar do que não podem? Ou é o país onde uma rapariga de 18 anos pode fazer um filme? Eu respondia que é um país de ambos! É um lugar onde estes contrastes  coexistem.?
?No caso das mulheres se tornarem livres e trabalharem fora de casa, às vezes a pressão ajuda. É como uma nascente. Quanto mais tapares, mais jorra quando largares a mão.?
A rodagem de ?A Maçã? foi qualquer coisa do género: rápida, surpreendente, até um pouco assustadora.. ?A Maçã? foi rodada em 11 dias. ?Tive de o acabar muito rapidamente porque o governo nos arranjou muitos problemas. Não deixavam de nos visitar durante as filmagens. Não paravam de fazer perguntas. Aquele pai é um símbolo da nossa cultura.?
?A Maçã? dramatizava a história verídica de duas raparigas presas em casa pelo seu pai, um  fanático religioso. O filme usava as próprias raparigas a fazer os seus próprios papéis. E isso foi outra razão para filmar rapidamente:? Elas mudavam todos os dias. Não fisicamente mas nos efeitos da sua liberdade. No início quase que não conseguiam falar. Olhavam para mim como se eu não fosse humana, como se fosse uma cadeira. Pensei,? Como vou fazer um filme com elas??. Depois pensei,? Se elas estão simplesmente vivas, e eu gosto delas, e eu realmente gosto delas, então eu posso comunicar com elas. E no fim queriam estar em todo o lado, envolver-se, sair para a rua.?
Como com ?A Maçã?, o pai também colaborou no argumento e ajudou na produção de ?O Quadro Negro?. Para os Makhmalbaf, o cinema é um assunto de família, o irmão mais novo de Samira fez o ?making of? de ?O Quadro Negro?, e a irmã mais nova o de ?Às Cinco da Tarde?: Quando com 14 anos Samira deixou a escola o pai transformou a casa numa escola não-oficial de cinema, envolvendo a família e amigos. ?Nós éramos 12 pessoas? diz Samira. ?Sentávamo-nos e conversávamos, e alguns dos amigos do meu pai eram poetas ou escritores, designers, artistas.?
No início dos anos 90, Moshen Makhmalbaf fez ?Momento de Inocência?, e recusou-se a montá-lo como os censores queriam. O filme é um  docu-drama, baseado num episódio da sua vida, sobre um jovem que ataca um polícia. A recusa foi um ponto de mudança na vida da família. 
?Uma madrugada? Samira lembra, ?o meu pai chegou perto de mim e disse-me, ?Gostavas de continuar a viver nesta casa ou preferes não ver as nossas ideias censuradas?? Claro que eu disse  preferir as ideias. E depois,  perguntou ao meu irmão e à minha irmã, que responderam o mesmo. Vendemos a nossa casa e mudamos para uma mais pequena. Mas foi a forma de podermos comprar o filme e mostrá-lo como queríamos. Na altura não éramos ricos. O meu pai estava sempre a escrever argumentos e a submetê-los à censura e a serem recusados. ?
Lentamente o cinema iraniano foi-se libertando. Uma nova geração, apadrinhada real e figurativamente por Makhmalbaf, tornou-se dominante no cinema iraniano.
Mas quanto poderá durar um cinema livre no Irão? Na referida entrevista quando perguntaram a Samira o que poderá acontecer depois das últimas eleições, a resposta foi ?Não sei. As pessoas não acreditaram em ninguém. Por isso não foram votar. Não sabemos o que vai acontecer no Irão. Não sei.?

P.S. Atenção ao Festival de Curtas-Metragens de Vila de Conde, este ano de 3 a 11 de Julho.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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