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Lei de Bases da Educação

Um novo mundo de perplexidades

No momento em que escrevo, a Proposta de Lei de Bases  da Educação, como o Governo faz questão em  designá-la,  está em vésperas de ser aprovada. Tudo leva a crer que com, apenas, os votos das forças partidárias que apoiam o governo, o que não pode deixar de ser visto como de muito mau agoiro: independentemente do futuro deste governo, desejar-se-ia  que a educação,  nas suas grandes matrizes e bandeiras, não ficasse indelevelmente marcada na primeira década do século XXI com o ferrete da direita. Dir-se-á que, nos tempos que correm, são questões de somenos essas  que se filiam nas nomenclaturas de direita e de esquerda; basta, porém, ler  com  algum sentido  crítico os referentes centrais do texto proposto para  aprovação na Assembleia para se ver como em educação as questões de nomenclatura tomam sentido.
Deixemos de lado o guisalhar dos ?slogans? em que é fértil a apresentação dos motivos que acompanha a  Proposta ? o que não é certamente por acaso  - (?O combate à exclusão social começa aqui ? na escola ? e tem de ser vencido. É um inalienável imperativo de cidadania. Temos que assegurar, enquanto Estado, o sagrado princípio da igualdade de oportunidades no acesso de todos à educação e ao ensino?) e centremo-nos  nos fundamentos  ideológicos que dão sentido à Proposta de  Lei da Educação.
O sentido ideológico central da Proposta vai o Governo buscá-lo às teses muito em voga do mundo volátil da globalização, designadamente às da sociedade do conhecimento ou da informação que figura na economia argumentativa do discurso como um axioma, em torno do qual se fazem alinhar todos os corolários indispensáveis à demonstração da soberania inquestionável das medidas propostas.
À sociedade da informação é atribuída uma virtude omnipotente que impõe as suas exigências a todos os domínios da vida social, moral económica e cultural; a essas exigências fica especialmente sujeito o sistema educativo ou, melhor, a educação e a formação, como o documento faz questão em sublinhar. Vejamos em que termos é concebida essa tal sociedade do conhecimento através deste passo tão significativo constante da exposição de motivos III:
?A  sociedade do conhecimento é, não só actual, mas bem real. Reclama especiais competências  para a utilização da informação e, porque é flexível, exige capacidade de adaptação, porque assenta na inovação, exige capacidade para enfrentar o desconhecido, porque é heterogénea, exige a capacidade de tolerância e interpretação autónoma do diverso, porque é interactiva, exige capacidade para desenvolver interligações, apontando para o limite do global, e para desenvolver intraligações, apontando para as referências próprias da existência individual?.
Neste rol de exigências que a sociedade do conhecimento nos impõe, tanto somos atingidos no plano intelectual, como no plano moral, tanto no plano social, como no plano pessoal e individual. A capacidade de adaptação, o enfrentamento do desconhecido, a inovação, a capacidade de tolerância, a autonomia, as  interligações para o global e as intraligações para o pessoal (sic), tais são algumas das competências indispensáveis à vida do quotidiano a que nos obriga a sociedade do conhecimento.
Vemos assim que o estilo de argumentação em causa converte a sociedade do conhecimento já não num poder de que os homens dispõem mas num conjunto de deveres, de obrigações, de mandamentos que se traduz numa doutrina de submissão, de quase auto-negação moral e intelectual do sujeito humano. É pela sociedade do conhecimento, ?que é na sua essência personalista? (pasme-se!) que o cidadão acede à ?capacidade autónoma de juízo, sentido criador  e capacidade de organização?, isto, é ao sentido da responsabilidade individual. Conforme diz o texto, ?a responsabilidade individual ...exige realmente competências e aptidões cada vez mais vastas  e profundas que se suportem na conjugação  dos conhecimentos específicos...com as formações mais vastas e perenes?. ? É que só um tal modelo de educação permite olhar para o paradigma conflitual e tensional do mundo de hoje como um conjunto de desafios, estimulantes de respostas e, assim mesmo, de inovação?.
Neste contexto ideológico, as questões do mundo de hoje deixam de ser sociais, políticas, culturais, económicas, para serem eminentemente cognitivas; donde se deve concluir que é o défice de conhecimento  que  explica o conflito, a guerra, a injustiça, a dependência, a miséria, enfim, o mal-estar da humanidade.
Não é isso, afinal, o que significa  esta hiper-responsabilização da educação e da formação?
Retomaremos.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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