Página  >  Edições  >  N.º 134  >  É pena ?

É pena ?

«O tempo está uma maravilha. O sol hoje excedeu-se a si mesmo e o desfile que passa junto aos nossos microfones é inundado pela tépida e morna luz que desce de um céu inacreditavelmente azul. Nos ramos das árvo­res distingo pássaros, milhares deles. É difí­cil acreditar que tenhamos tantos pássaros. Passamos o tempo a dizer mal, e é preciso um dia festivo como este, depois de anos de erros e distorções, para nos fazer compreen­der que temos tal abundância de pássaros. Estes pássaros cantam, cantam tão estupen­damente que até parece que não são pássa­ros, mas... cavalos.
Neste momento, um grupo de desportistas passa pela tribuna de honra. Músculos tensos, suaves e volumosos. Peito para fora, costas para dentro! Produzimos alumínio e havemos de produzir ainda mais. Eis a nossa juventude! A juventude que não nos deixará mal vistos. Estão agora a saudar a tribuna de honra, gri­tam qualquer coisa, mas não consigo ouvir. O canto dos pássaros submerge tudo.
«Aproxima-se o segundo grupo. Aos desportistas seguem-se os velhos pensionistas e crianças de orfanatos. Indistintamente jun­tos, simbolizam a fraternidade, marchando sob o slogan: Velhos e novos - novos e ve­lhos. Agora marcham, mas até aqui tinham sido esquecidos, injustamente esquecidos. É uma pena que não os possam ver. Lado a lado, pequenas cabeças loiras e fardas às listas ou lisas, cinzentas, pijamas e casacos! O drapeado das fardas brilha ao sol. Algumas crianças ainda não aprenderam a andar devi­damente, por essa razão os organizadores viram-se obrigados a atá-Ias a cinco e cinco e ligá-Ias aos pensionistas mais vigorosos. Por outro lado, os velhos que já vêem com dificuldade guiam-se pelo chilreio das crian­ças. Estes jovens são a nossa maravilhosa geração de crianças abandonadas. Ouve-se agora a ordem de: Olhar à direita! Todos aqueles que há anos estão paralisados do lado direito ou com contracções nervosas no braço direito esperaram anos por este preciso momento para se exibirem. Estão agora a desfilar diante da tribuna de honra. Um dos pensionistas desatou a bater palmas, mas um dos braços saltou-lhe. Um soldado apa­nhou-o e devolveu-o ao respectivo dono. Quando o velho lhe agradeceu, o soldado pôs-se em sentido e fez continência.
«Desfilaram. Mas isto não é ainda o fim do cortejo. De modo algum. Faz-se agora ouvir o barulho de pés e o arrastar de botas. Sim, ei-Ios que surgem! Os nossos gloriosos, incomparáveis, inválidos reabilitados! Um grupo de homens de óculos escuros e bengala branca manter-se-ia enganado no caminho, se não fosse o humano destacamento de per­netas que balança as muletas com gosto. E assim, harmonicamente, todo o agrupamento avança para a tribuna de honra. As pernas de madeira emitem reflexos ao sol. Damos conta de cenas movimentadas: dois homens, cada um com um braço a menos, juntam-se para poderem bater palmas; um mudo tenta proferir uma saudação, mas não consegue.
«Atrás, apressando-se, mesmo à nossa frente, vai um esquadrão de cadeiras de rodas. Com que destreza são manobradas! O sol reflecte-se nos raios niquelados das rodas. Estamos assim a produzir níquel e havemos de produzir mais. È uma pena que o nosso rádio-ouvinte não possa ver este espectáculo.
«Passaram. A rua ficou vazia. Mas não pense que a parada já terminou. De modo algum.
«Vêm aí agora os que seriam visíveis se não tivessem morrido. Sim, ei-Ios que che­gam. O sol brilha. Passam agora a marchar à nossa frente, todos vítimas de erros. A tri­buna faz uma saudação. Os pássaros cantam. E marcham como se estivessem vivos. É a isto que eu chamo aguentar... e compreender. Transportam os caixões com alegria, apresen­tando-os à tribuna de honra num gesto como­vente. Sim, não pode haver dúvida acerca disso. Passam a marchar. Somos grandes exportadores de carvalho e havemos de expor­tar muito mais. Eles marcham orgulhosos por ter chegado finalmente o dia. Os pássaros cantam.
«É pena que não possam ver nada disto.»


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Mrozeck
Escritor
Mrozeck
Escritor

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo