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Ainda a avaliação dos funcionários públicos

Retomo a temática abordada por Adalberto Dias de Carvalho no número de Março d?«A Página» ??Avaliar funcionários. Um desafio à ética docente?? ? para, sobre a mesma tecer algumas considerações que, não entendendo conflituosas com a reflexão a que me reporto, poderão suscitar uma leitura complementar sobre a mesma.
E retomo esta temática, introduzindo uma questão, porventura complexa no caso dos professores, e que se prende com a identificação de ?quem avalia?. Porque, se aquilo a que esta iniciativa se reporta é o combate à inflação de avaliações máximas, não são os avaliados que estão em questão, é o próprio processo de avaliação, é, em última análise, o avaliador que está em questão. O sistema de quotas de avaliação agora proposto, se formalmente resolve o problema da distinção de notas (resolveria supostamente o problema do processo de avaliação), mais oculta relativamente às competências de quem avalia, isto é, ao procurar tornar mais transparentes os processos de avaliação dos funcionários públicos, recorre-se a um processo de desresponsabilização das suas chefias, já que as mesmas deixam de responder pelos procedimentos conducentes à diferenciação dos seus subordinados para passarem a ser competentes, sobretudo com a gestão do sistema de quotas.
O ?chefe?, que deterá (também) a responsabilidade da avaliação dos seus ?subordinados?, será um bom chefe se não for autónomo nos seus processos de decisão? Mas não é essa uma característica que o distingue, precisamente enquanto ?bom chefe?? O governo que se afirma detentor do primado da gestão seria aquele que, mais autenticamente lhe retiraria uma característica identificadora desse mesmo primado, o exercício autónomo do processo de gestão !
E quem é o avaliador, no caso das escolas? É o Director Executivo, preferencialmente distante do exercício da docência, comprometido com o idolatrado exercício da gestão, gestor de quotas de avaliação de desempenhos e que, ao desconhecer o ofício o subtrai a uma grelha de critérios cuja objectividade é, sobretudo comandada pela ?objectividade? das quotas?
Os ?bons chefes? da função pública ir-se-ão deparar com uma camisa de varas que não retracta necessariamente uma realidade; diferenciarão por imposição, e não por qualquer critério objectivo de competência ou desempenho (como diz Adalberto Dias de Carvalho, sujeitar-se-ão ?às classificações que implacavelmente impõe(m) que para uns estarem dentro (do topo e das suas vantagens) outros terão que ficar de fora?). Em contrapartida, os ?maus chefes? têm a vida facilitada porque, a partir de agora não é da sua responsabilidade distinguir os seus funcionários (porque é a distinção que é a ?grande? alteração, não o exercício de fundamentação da distinção, o que, sob o ponto de vista da avaliação é, evidentemente problemático).
Há claramente outros critérios susceptíveis de serem ensaiados, se se deixar de calamitosamente endereçar a totalidade da ?desgraça? do funcionalismo público a todos os funcionários, indistintamente (e é isso que esta nova regulamentação pareceria conseguir, ou seja, transformar o compadrio generalizado numa espécie de compadrio selectivo ...). Já o PS começara a abordar este processo de um outro modo, ao procurar detectar e denunciar (penalizar ?) as faltas fraudulentas, reduzindo no espaço de dois anos de modo vertiginoso a expressão das mesmas. Presumo que, se o PS tivesse continuado a ser governo, teríamos assistido de seguida ao processo de confronto dos fraudulentos detectados com a sua avaliação ... para responsabilizar os seus chefes. Afinal, o fraudulento é-o porque, implícita ou explicitamente foi autorizado a sê-lo! Ou não ? (não discuto aqui a possível fraudulência dos chefes, mas apenas que a mesma seja resolvida com esta lei).
Há claramente uma perspectiva ideológica nesta tomada de posição do governo, relativamente à avaliação dos funcionários públicos: centralizar os processos de decisão (expressos no sistema de quotas) resulta numa maior ocultação da sua explicitação e numa desresponsabilização das chefias intermédias; por outro lado, porque se entendeu politicamente que, gestão e serviço público são expressões que não combinam, só a demonstração da inoperância do serviço público permitirá tornar claro que, das duas uma: ou o mesmo não deve existir ou o mesmo deve ser comandado superiormente.
Enquanto cidadão, não esqueço uma situação numa repartição pública em que, face a um funcionário incompetente, um chefe ainda mais incompetente veio tentar por a água na fervura. ?Que não valia a pena escrever no livro de reclamações, que afinal tudo se resolvia?, ao que lhe respondi, ?não, de facto não vale a pena, porque não é o seu funcionário que é incompetente, o incompetente é o senhor!?
Quando Adalberto Dias de Carvalho diz no seu artigo que, na sequência deste novo sistema de avaliação dos funcionários públicos e, neste particular, dos professores, ?a ética dos princípios educativos e a deontologia profissional passaram a estar claramente em causa ...?, não posso estar mais de acordo com a sua opinião. Mas, enquanto professor (e funcionário público), não enquadro na ética dos princípios educativos e na deontologia profissional o direito à sobranceria desses mesmos princípios. E, por muito doloroso que tal possa parecer, não me parece restar alternativa ao exercício de avaliação numa profissão onde é tão acentuada a necessidade de um trabalho colectivo como o é na profissão docente, a não ser aquela que permita evitar qualquer expressão de sobranceria relativamente a princípios éticos e deontológicos, desde logo sob o ponto de vista de uma profissão que se acredita assente em referenciais de trabalho colectivo, mas que não consegue ocultar uma individualização do exercício profissional, a qual é bem expressa pela normatividade dos currículos e pelo imperativo disciplinar (quero tornar claro que não defendo qualquer modelo tipo ?Ordem?, até porque estas estruturas tendem a cristalizar princípios do exercício profissional e da interpretação da ética e da deontologia redutores ? porque centrados no exercício individualizado dos profissionais ? incompatíveis com um dos campos profissionais que, porventura melhor espelha (e se confronta com) a própria transformação social; o que me parece é que, qualquer regime de avaliação a introduzir no contexto das profissões ligadas à educação não poderá ser melhor interpretada por outrem do que, pelos próprios profissionais da educação. Mais do que de uma ordenação, é da discussão de uma recomposição estruturante e permanente de uma praxis constitutiva da profissão que aqui falo).
E as organizações escolares têm órgãos que permitem pôr esta prática em exercício. Era, de facto, bom que as organizações escolares, que as instituições públicas não vacilassem tanto ao sabor dos governos, soubessem construir uma autonomia que, a existir, só se poderia sentir insultada com este tipo de medidas legislativas. Não estaríamos, porventura aqui a discutir quotas ...
E a terminar, ?porque não se contingentam as classificações mais baixas?, como questiona Adalberto Dias de Carvalho? Pela mesma razão que faz com que não nos sintamos insultados; não porque ?não acarretam aumentos de despesas ou até por trazerem a sua diminuição?, mas porque estamos tão habituados, enquanto cidadãos a ser tão maltratados pelo Estado ? um Estado que sempre nos olha com desconfiança ? que vulgarizamos o seu significado. Se é previsível que as classificações mais baixas não venham a ter qualquer expressão, é porque o legislador sabe que são as ?novas bitolas? que passarão a comandar-nos e não, em definitivo, um qualquer exercício sério de avaliação. O legislador não problematizou o exercício da avaliação, limitou-se a ?reduzir? (e adulterar) o exercício da sua excrescência !
Conseguiremos sentir-nos insultados, por uma vez que seja ?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 133
Ano 13, Abril 2004

Autoria:

Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Henrique Vaz
Assistente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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