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Comentários a um excerto de uma conversa em-tarefa

VIDA DESREGRADA EM TRABALHO DE GRUPO

O discurso educacional tem negligenciado a investigação dos processos de sala de aula, permanecendo retorcido, oracular, vão. Pródigo em normas sócio-políticas reguladoras das práticas institucionais, prolixo em reformulações curriculares, profético em ditames didácticos, esqueceu que estes constituem tão-somente um enquadramento macro-  contextual de efeitos fortemente mitigados pelas paredes da sala de aula, de cada sala de aula.
No interior desta, conteúdos e tarefas de aprendizagem materializam-se no discurso, processo conversacional, logo interactivo, intencional, e racional, indissociável da passagem linear do tempo, das normas conversacionais, e dos papéis sociais e psicológicos dos interlocutores. Cada tipo de actividade de fala em sala de aula cria expectativas, acciona conhecimentos, e canaliza inferências, condicionando a interpretação; as expectativas, porém, vão-se modificando, à medida que os participantes interagem, sendo a interpretação do significado um processo dinâmico que emerge da própria interacção. Como afirma Riley (1985, p.6[i]), o pleonasmo interacção como colaboração é, ao mesmo tempo, uma propriedade dos acontecimentos e uma construção em colaboração.
Não obstante a natureza propriamente conversacional ? e colaborativa - do ensino-aprendizagem em sala de aula, tem-se veementemente propalado a necessidade de os alunos colaborarem, ou participarem, como se poderia igualmente recomendar vivamente que usassem caneta, ou lápis.
Assim, as actividades de aprendizagem cooperativa, expressão que engloba procedimentos de sala de aula que encorajam técnicas de trabalho em pequenos grupos com objectivos de cooperação, têm conhecido grande e indiscriminada divulgação, ainda que, em boa verdade, a investigação as tenha colocado apenas em 4º lugar, de entre sete factores que afectam positivamente o rendimento académico (Walberg 1986, pp. 214-229[ii]).
Seja como for, as tarefas de aprendizagem cooperativa, tal como todas as outras tarefas de sala de aula, têm que ser comunicadas, e realizam-se comunicando. Ora é do ajuste e pertinência dessa comunicação que elas resultam, ou não, eficazes. Vejamos então.
Na caixa em baixo reproduz-se um excerto representativo de uma longa conversa em tarefa, em momento já adiantado da mesma. Um grupo de alunos de Inglês do 9º ano, nível 5, constituído por três raparigas (F3, F4 e F5) e um rapaz (M7) preparam, cooperativamente, a descrição do dia-a-dia suicida de um executivo, um tal Mr Fat (em Português, sr. Gordo). No quadro de aula encontra-se uma lista de vícios, em língua inglesa, para sustentar o pensamento. Leiamos o que dizem:

(?)
1 F5: olha, olha, olha, podíamos pôr assim, quando ele chega ao trabalho,=
2 M7: sh::::::
3 F5: =ele bebe um copo de whisky, pá, vamos lá,
4 M7: não, ca::::lma, não, não,
5 F4: whisky, de manhã, quando muito à noite, antes de sair do trabalho,
6 F3: não, de  manhã::
7 M7: then, he never he never walk- -
8 F4: whisky, de manhã::, [para F3, em tom de discordância]
9 F3: sim, sim, ch- chega ao escritório, chega ao escritório- -
10 M7: sh, cala-te, cala-te, cala-te, CALA-TE, CALA-TE, CALA-TE, [para F3]  
11 F4: a pessoa bebe whisky, de manhã, [para F3, discordando]
12 F5: calem-se, vá lá:::
13 M7: pá, CALA-TE, deixa fazer isto, then, [dita]
14 F4: pronto, a cup of coffee/
15 M7: then,
16 F4: outra vez then?
17 M7: then- - não, ?tá bem, ponto/ he enter in his car,
18 (F3): ponto/ (já foi ponto)
19 F4: then, ponto/
(?)

O discurso, realizado em Português, emoldurando incipientes segmentos frásicos em Inglês, está recheado de interrupções, sobreposições e arrebatamentos de vez (representadas pelos pontos de inserção espaçados face à margem), de truncamentos, prolongamentos vocálicos, volume elevado e ênfase, de falas laterais e de enunciados divergentes, todos indicadores de  desatino.
A procura da ordem e, simultaneamente, da liderança, mantém-se prioritária: os alunos esgrimem um número esmagador de prefácios e de marcadores interpessoais de natureza reguladora, para fazerem vencer os respectivos contributos, destinados à descrição de uma vida votada ao enfarte do miocárdio ? por exemplo, 1 F5: olha, olha, olha, podíamos pôr assim ((?)), 4 M7: não, ca::::lma, não, não, 3 F5 ((?)) ele bebe um copo de whisky, pá, vamos lá, 12 F5: calem-se, vá lá:::, ou ainda 2 M7: sh:::::: .
Nesta contenda, a ascensão de M7 é gradual, porém implacável; obcecado pelo poder, toma-o sem cerimónias em 10 M7, e consolida-o definitivamente em 13 M7, passando, simplesmente, a ditar, (then,); não resta oportunidade a F4 de clarificar a tarefa ? de facto, ou ela quer salvar Mr Fat, apesar de tudo, ou pensa que está a descrever a vida higiénica de um Mr Fit (em Português, sr. Escorreito) (cf. 5 F4, 8 F4, 11 F4). Nem ela nem nós chegaremos infelizmente a saber, tal a tirania reinante.
O potencial educativo geral deste tópico, de âmbito claramente transdiciplinar e com fortes ligações à vida, é, incontestavelmente, elevado: mastigando bem os riscos das muitas cafèzadas e cigarradas, das noitadas de trabalho regadas a whisky, dos congestionamentos do trânsito e  do ar abafado dos elevadores em que mr Fat anda encafuado, sem uma benéfica ida ao ginásio ou ao restaurante light, os alunos parecem preparar-se eficazmente para se integrarem neste mundo de alucinados sem danos de maior. Mais, se à altura já houvesse a disciplina de Educação Sexual, a decrição ficaria decerto ainda mais completa, e os alunos ainda mais preparados para gozarem os prazeres da vida sem darem cabo da saúde.
Em termos sociais, infelizmente, mais uma vez se manifesta aqui, mesmo sem a interferência retrógrada e repressiva do professor, o carácter conservador da escola (está decerto agarrado às paredes), perpetuando-se a enraizada prática de onde há galo não canta galinha.
Quanto ao Inglês propriamente dito, o produto final, que não reproduzimos aqui por falta de espaço, vai um pouco ao estilo da última fala de F4: then, ponto/
Mas também não faz mal. Todos sabemos que nós, os Portugueses, ao contrário dos Espanhóis, temos muito jeito para línguas.
Regresso no fim do ano (civil). No próximo mês, o lugar está reservado a outro colega de grupo, Paulo Raposo com "Livros que andam à solta. Um movimento global e um projecto escolar sobre a leitura".[i] Riley, P. (1985). In P. Riley (ed.), and Discourse and Learning, pp. 1-12. London, Longman.[ii] Walberg, H. (1986). ?Synthesis of Research on Teaching.? In M. C. Wittrock (ed.), Handbook of Research on Teaching,  (pp. 214-229). New York, Macmillan.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 133
Ano 13, Abril 2004

Autoria:

Ana Laura Metelo Valadares
Escola Superior de Educação de Lisboa
Ana Laura Metelo Valadares
Escola Superior de Educação de Lisboa

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