Página  >  Edições  >  N.º 133  >  Infâncias e estereótipos

Infâncias e estereótipos

TEATRO PARA CRIANÇAS

Por muitos anos, o teatro infantil reproduziu nos palcos, através de seus personagens-criança, um modelo de infância em harmonia com um estereótipo até hoje muito presente nos discursos das mídias e também de alguns ?especialistas em infância?. Trata-se da criança vista como um ser débil, frágil, incompleto, como «tabula rasa» a ser preenchida, como bom selvagem a ser domesticado e socializado. E, nesse sentido, o teatro infantil não esteve só: diversos são os estereótipos(1) de infância nas culturas ocidentais contemporâneas. Tais estereótipos consistem de traços e discursos inventados (e posteriormente naturalizados) para marcar o infantil em vários e distintos campos: na literatura, no cinema, na mídia televisiva e impressa, na pedagogia, na medicina, na psicologia, etc. Dentre eles, o mais duradouro e difundido é a  representação da infância ligada à carência, dependência e debilidade dos infantes.        
Podemos pensar sobre a presença desse estereótipo no teatro infantil em várias dimensões. Na medida em que esse teatro  ? assim como a quase totalidade dos artefatos culturais para (consumo das) crianças ? é concebido, criado e pensado por produtores adultos, os discursos veiculados nesse artefato seguem, privilegiadamente, uma visão adultocêntrica do mundo, trazendo à tona os regimes de verdade(2) instituídos e construídos pelos adultos de uma determinada época histórica; naturalizando certas representações e suas conseqüências na materialidade cotidiana e corpórea dos indivíduos; sujeitando-os, isto é, transformando-os em sujeitos de um certo tipo (Bujes, 2001). Nesse sentido, as representações e os estereótipos infantis presentes na cena teatral para crianças obedecem a uma lógica centrada nos construtos culturais acerca da infância e se alinham aos saberes que sobre elas se desenvolveram ao longo dos últimos quatro séculos, sempre na tentativa de transformá-las em ?seres civilizados?, dotados de disciplinamento produtivo às sociedades capitalistas. Sobre este aspecto, diz-nos Jorge Larrosa que ?a infância é algo que nossos saberes, nossas práticas e nossas instituições já capturaram: algo que podemos explicar e nomear, algo sobre o qual podemos intervir, algo que podemos acolher? (1998, p. 68)(3). Especificamente, nos produtos teatrais para crianças, buscou-se encontrar uma linguagem que seria própria da infância, adequada para atingir os pequenos espectadores, dentro da pretensão de que nós, os adultos, ?sabemos o que são as crianças, ou pretendemos saber, e procuramos falar uma língua que as crianças possam entender, quando tratamos delas nos lugares que organizamos para albergá-las? (Idem, Ibidem).
É fato que o teatro infantil tem sido um lugar privilegiado para a instituição e reprodução dos mais variados estereótipos, indo além das imagens das crianças e capturando mulheres, professores, cientistas, índios, negros, animais, etc. como alvo desta redução. Entretanto, parece-me que nesta última década vêm se desenvolvendo entre os produtores deste campo, no Brasil e em outros países, algumas discussões e contestações a este caráter redutor. E aqui não trato da linguagem específica dos tipos teatrais imortalizados pela Commedia dell`Arte, pelo vaudeville e pelo melodrama, e sim das representações que estereotipam ? ?classificando, inserindo em determinada norma e capturando em suas instituições de controle e disciplinares?(4) ? os sujeitos sociais contemporâneos, geralmente aqueles considerados em desvantagem econômica, de gênero, raça, idade ou no âmbito de peculiaridades culturais e sociais. Enfim, todos os outros do ?homem-adulto-letrado-branco-classe-média-ocidental? - parâmetro para os processos de classificação e normalização - têm sido submetidos a reduções e estereótipos que só mais recentemente começam a ser questionados .          
Percebo, assim, que as representações de infância(s) no contemporâneo teatro infantil têm-se modificado. Atores, diretores e dramaturgos buscam colocar em cena personagens-criança que se aproximem mais das crianças que podemos observar cotidianamente em nossas casas, nas ruas, pátios e escolas. Ainda que se considere que a infância é uma construção social e que se veja mantida, por parte dos produtores destes artefatos, a imagem da criança como o ?outro? do adulto, não se pode negar que há uma forte tendência a desconstruir os estereótipos de infância que perduraram por tantos anos no teatro para crianças. 
Hoje as possibilidades de representação da infância também se ampliaram: fala-se em infância digital, em infância desrealizada, em infância midiática, em infância adultizada, em infância erotizada, em criança sabe-tudo, em criança-monstro, etc. Proclama-se, catastroficamente, o iminente e inevitável fim-da-infância. Lamenta-se a perda da inocência, da pureza de um ?estado original infantil?, contaminado pelas informações veiculadas e expostas em todos os lugares da vida social. As infâncias ? a ?perdida?, a ?ideal?, a ?real?, a ?nossa? ? estão no centro das discussões.
Mas nem tudo é transformação. Ainda que haja a tentativa, por parte de diversos produtores teatrais, de inserir nos palcos contemporâneos um pouco da diversidade de infâncias encontradas em nossas sociedades, muitos espetáculos continuam representando as crianças através da velha, monolítica e cristalizada visão do infantil. E é nesse panorama que cabe estimular, entre as crianças espectadoras, e entre o público em geral, o debate acerca das representações que delas se faz nas várias instâncias de produção cultural, como os palcos teatrais, as telas de cinema e televisão, as páginas de livros e revistas, etc. Quem sabe seja possível, assim, contribuir para a desnaturalização daquilo que nestes espaços é posto como ?a verdadeira, legítima e única infância?.

Notas:
(1)A noção de estereótipo que utilizo aqui refere-se a formas representacionais de determinado ente (ou grupo) na qual somente alguns traços ou características suas são ressaltadas e ?pintadas com cores muito fortes?, reduzindo-o a elas, negando qualquer espécie de complexidade ou contradição em suas relações e ações, fazendo-o agir e existir no mundo que habita de forma imutável. Para maior aprofundamento sobre as questões de estereótipos no teatro, ver P. Pavis (1999), em seu Dicionário de Teatro, São Paulo: Editora Perspectiva. Sobre representações culturais e estereótipos, ver S. Hall (1997), The Spetacle of the ?other?.
(2) Conceito desenvolvido por Michel Foucault e trabalhado por Bujes (2001) em sua tese Infância e Maquinarias, publicada homonimamente pela Editora DP&A, do Rio de Janeiro, em 2002.
(3) LARROSA, Jorge. O enigma da infância ou o que vai do impossível ao verdadeiro. In: LARROSA, J.; LARA, N. P. de. Imagens do outro. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 67-86
(4) Anotações feita durante palestra proferida pelo Prof. Dr. Alfredo Veiga Neto, ministrada no semestre 2003/01, junto ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no qual sou mestranda.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 133
Ano 13, Abril 2004

Autoria:

Taís Ferreira
Bacharel em Artes Cênicas, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisadora do NECCSO
Taís Ferreira
Bacharel em Artes Cênicas, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisadora do NECCSO

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo