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A Poesia do Invisível de nossas pesquisas no e do cotidiano

Lendo Ítalo Calvino, percebi que temos que voar para outros espaços quando o reino do humano fica condenado ao peso. Mudar o ponto de observação nos faz entender uma outra ótica e novas possibilidades, quando os meios de conhecimento e controle nos dizem não ter alternativas.

A possibilidade de ousar a voar à maneira de Perseu pode nos fazer deparar com a poesia do invisível nas infinitas possibilidades imprevisíveis que cada contexto cotidiano nos instiga. Dessa forma, aceitar falar para professores de outras áreas da Ciência em uma universidade do interior do Estado do Rio de Janeiro possibilitou-me aprender e ensinar ligado às teias de tantos Outros presentes naquela cidade. Foi dessa maneira que pude escutar a história da Casa Léa Pentagna ao sair do espaço acadêmico, ao qual fui designada a falar sobre alternativas metodológicas para professores dos cursos de Medicina, Medicina Veterinária, Odontologia, Economia, Direito, Processamento de Dados e Filosofia. Em uma iniciativa pioneira, reunir tantas áreas da Ciência para escutar uma pedagoga só poderia trazer múltiplos conhecimentos. Ao preparar minha comunicação, depois de tantas idas e vindas ao texto escrito, jamais eu poderia imaginar que foi o fora do contexto acadêmico que pôde dar sentido ao que fora exaustivamente preparado. Foi exatamente o inesperado de uma saída pelos arredores daquela cidade que fez do rastro sem texto um texto cheio de rastros.
Fora justamente à ousadia em aceitar o convite proposto misturado ao sair da universidade que me fez entender que mais do que um espaço social e cultural de troca de saberes, no espaço acadêmico é preciso voar para o que está fora dele para testemunharmos nossas imagens presentes e futuras sem se dissolver em discursos ordenados de um conhecimento que regula nossas ações e pesquisas. Assim, ao conhecer a Casa Léa Pentagna, casa doada em testamento por sua proprietária para fins culturais, ela passou a representar a poesia do invisível naquele momento. Ao visitar aquela casa, foi possível perceber, em cada cômodo percorrido, observando o visível de cada objeto mesmo com as invisibilidades daquela que via; ao ouvir a narração de quem contava suas histórias enredadas a história de quem a contava, foi possível entender a sensibilidade de mulheres que ajudaram/ajudam nas mudanças que acompanharam as transformações sociais, econômicas e políticas do início do século XX até os nossos dias. De alguma forma, elas se apresentam de modo tão viva, ainda hoje, que o infinito da literatura não basta para deixar registrada tamanha imagem de leveza. O mundo que parece imóvel vai-se transformando passo-a-passo, fala-a-fala, olhar-a-olhar naquela visita. Fui aprendendo, fora da universidade, com sua ?diretora encantada? por tamanha história de resgate daquela casa, o fio de sua própria vida de mulher-professora. Ou seria da minha vida?
Sentada à mesa daquela cozinha de tantas histórias, aguardando o fim da chuva de verão que caía torrencialmente, fui ouvindo e pensando nas possibilidades do meu egoísmo de pesquisadora. Mais uma vez, o inusitado cotidiano me ensina que pesquisar é também pensar no que pode ser pesquisado e me surpreendo com o que passo a ouvir: ?Eu não continuei lendo as cartas de Lea porque não me sinto autorizada a invadir sua privacidade?. O que me encantou foi aprender que, mesmo com as infinitas possibilidades de pesquisa naquela casa, com as múltiplas idéias que me sobressaltavam do que ainda poderia ser descoberto, fui interrompida com a doçura da voz que se encanta com as conquistas de tantas lutas para resgate histórico daquelas memórias. Ela também se reserva o direito inseparável da idéia democrática de não ir além do que pode ser.
Finalmente, tudo isso parece querer ensinar que, na pesquisa do/no/com o cotidiano, também é preciso entender a lógica desse mesmo cotidiano sem tentar colonizá-lo e invadir o que ele parece deixar visível. Aprendo que, para pesquisar no/do e com o cotidiano, também precisamos estar atentos às nossas ignorâncias de pesquisadores. A tensão entre a regulação e a emancipação (SANTOS, 2000) presente constantemente em  nossas pesquisas pode estar estabelecendo não só as condições de sua autonomia e as condições do realizado, mas também recusando aquilo que parece deixar evidente o impacto da poesia do invisível.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 133
Ano 13, Abril 2004

Autoria:

Solange Castellano Fernandes Monteiro
Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Solange Castellano Fernandes Monteiro
Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil

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