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Uma boneca pedagógica universal?

Que a globalização econômica e cultural nos atinge a todos ? disso é difícil discordar! Que a infância não está imune à sua rede ? também estamos de acordo sobre isso! Mas se nos voltarmos para nosso cotidiano, seguramente teremos dificuldade em discernir todas as teias globais que nos ?unem? ? do cidadão e da cidadã português/a ao cidadão/ã japonês/a, do cidadão e da cidadã brasileira ao/à cidadão e cidadã coreano/a. E essas considerações vêm ao caso quando pensamos na extraordinária penetração, entre as meninas do mundo inteiro, de Barbie, a primeira boneca quase universal ? um elo imaginário entre milhões de garotas que falam línguas diferentes, freqüentam escolas diversificadas e, possivelmente, tenham rotinas, horários e famílias também diferenciadas.

Desde a década de 1960 em alguns países ? relembremos que ela foi criada em 1959 - desde os anos 70 ou 80 em outros (em Portugal ela surgiu em 1984; no Brasil, em 1982), Barbie é um fenômeno de mercado, de público e de comunicação. Se falamos de ?sucesso de comunicação?, é porque se entende que Barbie não é só ?entretenimento?, como também não eram, aliás, as bonecas bebês em que nossas filhas realizavam, de certa maneira, um ensaio de maternidade! A literatura especializada registra a precedência histórica de outras bonecas adultas, mas o surgimento da Barbie naquele momento significou a ruptura do modelo dominante da boneca bebê/criança, feita para outras crianças brincarem, em direção à boneca adulta, mulher sensual, charmosa, encarnada num corpo anatomicamente inviável, em relação à qual nenhuma criança brincará como ?mãe?. De um certo ponto de vista, poder-se-ia até julgar Barbie como protagonista de uma pedagogia inovadora, uma vez que teria transformado identidades projetadas de mãe ? que se harmonizavam com um destino feminino secularmente traçado ? em identidades de mulher moderna, arrojada, independente, feminista. Mas é necessária cautela nessa interpretação. Simultaneamente camaleônica ? porque sempre se basicamente seu talhe não se alterou desde o primeiro modelo), a boneca de 29 cm pode ser lida de várias formas, assim como se pode especular sobre as direções em que seu poder pedagógico se irradia.
Críticas não faltam a Barbie, embora certamente elas não venham das vozes dos milhões de meninas de hoje e das últimas duas ou três décadas, com idades estimadas entre 3 e 10 anos, que brincaram com uma ou mais dos seus exemplares (informa-se que só em Portugal já teriam sido vendidas 750 000 unidades até 1998, enquanto até 1996, no mundo inteiro, a venda de Barbies alcançou a astronômica quantia de 800 milhões de unidades!). A capacidade de a Barbie se renovar tem seu papel nesse sucesso e, neste sentido, a Mattel, sua fabricante, tem se mostrado sensível aos novos discursos no que eles possuem de possibilidades mercadológicas. Surgiram, assim, as bonecas étnicas, as negras, ainda que sobre elas recaia a pecha de não serem ?etnicamente corretas?, a multiplicidade de roupas e calçados, o namorado Ken, as amigas e, também com um olho na aquisição pelos colecionadores, as ?bonecas transmutando, ao sabor das projeções de mercados a serem adulados ? e permanente (colecionáveis?, devidamente inseridas em ?cenários?, como é o caso da Barbie Princesa de Portugal. Também a gama das profissões da boneca se expandiu continuamente: atleta, oficial de exército, enfermeira, executiva, repórter, candidata à presidência, etc. Do ponto-de-vista mercadológico, há quem afirme que ?a boneca-manequim (...) espelha a evolução da mulher no trabalho, no quotidiano e na vida pessoal, e é hoje reconhecida como uma metáfora de beleza, sucesso e emancipação feminina? (ver sítio 1, abaixo) Mas, evidentemente, este é apenas um olhar, em relação ao qual poderíamos questionar os conceitos de ?sucesso? e ?emancipação?. Vamos a alguns outros.
Mary Del Priore, conhecida historiadora cultural brasileira, não está sozinha quando nomeia a boneca como ?brinquedo perigoso?, que ensinaria fundamentalmente o valor do consumismo, da futilidade e da competição, corporificando um estilo de vida que privilegia o supérfluo. Muitas dessas críticas estão ligadas à criação mercadológica do ?universo Barbie? ? roupas, sapatos, acessórios, carros, maquiagem, banheiras, casas de sonho... o que passaria o ensinamento de que se atinge a felicidade através da aquisição de bens materiais simbolicamente valorizados, pedagogia, aliás, em que a magérrima boneca não está desacompanhada na contemporaneidade.
Também se imputa a Barbie o estabelecimento de um padrão de beleza homogêneo, fundamentalmente branco, incrivelmente magro, com longos cabelos loiros (na maioria dos modelos), com suas pernas longas, cintura fina, seios projetados e traços afilados, o que torna desvalorizados todos os outros padrões estéticos ? que não são poucos! Por outro lado, deve-se atentar para a opinião dos especialistas em mercado, que tributam seu inegável sucesso mundial à identificação das meninas com ela, o que, sem dúvida, apontaria para a força poderosa de suas pedagogias.
Steinberg, ao mencionar as inúmeras linhas temáticas já criadas pela Mattel para Barbie ? com profissões variadas, diversos cenários da história, do esporte e da moda ? sugere que a Mattel ?está apta a continuar reescrevendo a história e a vida?. Não seria o caso de nos perguntarmos, também, em que direções de valores, conceitos, representações e ambições, as Barbies reescrevem as histórias de suas sempre renovadas legiões de pequenas consumidoras?  E sem cairmos em qualquer determinismo, mas pensando na pedagogia cultural posta em movimento pela esguia boneca, poderíamos perguntar, fazendo eco a Contardo Calligaris: ?O que pode acontecer com as crianças brincando com Barbie?? E, admitindo a dimensão de modelo, de cânone da boneca, poderíamos continuar pensando com o mesmo autor: ?Mas também os cânones se deixam maltratar, deturpar, ultrajar?.

Referências bibliográficas:

  • CALLIGARIS, Contardo. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Ática, 1996.
  • DEBOUZY, Marianne. La poupée Barbie. Disponível em: http://clio.revues.org/document444.html. Acesso em 10 de agosto de 2003.
  • STEINBERG, Shirley. A mimada que tem tudo. In: STEINBERG, Shirley; KINCHELOE, Joe (orgs.) Cultura infantile ? a construção corporative da nfância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
  • DEL PRIORE, Mary. Histórias do cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001.





















  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Rosa M. Hessel Silveira
Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Univ. Luterana do Brasil e Univ. Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO)
Rosa M. Hessel Silveira
Professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Univ. Luterana do Brasil e Univ. Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECCSO)

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