Página  >  Edições  >  N.º 132  >  "Você quer o fato científico ou o que eu realmente acredito? "Os saberes dos alunos da escola pública.

"Você quer o fato científico ou o que eu realmente acredito? "Os saberes dos alunos da escola pública.

A pergunta desse aluno me fez refletir sobre a forma como a escola pública vem "fechando os olhos" para os conhecimentos prévios de seus alunos.

A fala registrada no título acima foi dita a mim, por um aluno da 6ª série, de mais ou menos 13 anos, no decorrer de uma pesquisa. Esse aluno estuda numa escola pública da rede municipal do Rio de Janeiro, no bairro de Santa Cruz, mais precisamente na região de Urucânia, segundo maior bolsão de miséria da cidade.
Ele estava respondendo a um questionário sobre a origem da vida e a evolução dos seres vivos, parte de uma pesquisa onde procuro relacionar os conhecimentos produzidos pelos alunos nos espaços não-escolares, especificamente nas religiões neopentecostais, e os conhecimentos específicos da área das ciências naturais.
A pergunta desse aluno me fez refletir sobre a forma como a escola pública vem "fechando os olhos" para os conhecimentos prévios de seus alunos, pois ao perguntar para os professores de ciências, dessa mesma escola, como eles trabalhavam o assunto em questão, eles responderam-me que, quando discutiam esse assunto, trabalhavam a teoria evolucionista e que os alunos aprendiam tranqüilamente, não havendo nenhum questionamento ou resistência.
Porque, então, o aluno me fez essa pergunta? Será que o fato de eu não ser sua professora e, portanto, não representar o poder de um determinado conhecimento garantiu a sua possibilidade de expressão? Que distinção esse aluno faz entre o conhecimento científico e o conhecimento popular, ou seja, aquele em que ele realmente acredita?
A escola pública vem, ao longo dos anos e apesar de todos os discursos teóricos falarem o contrário, tratando com preconceito os saberes trazidos por seus alunos. Em suas respostas esse aluno me explica, com toda propriedade, como surgiu o Universo, a vida, os seres humanos. Registra com clareza todos os conhecimentos que adquiriu, como ele mesmo diz, na Bíblia, através do pastor. Porém,  a escola, apesar do discurso do estudo da realidade, da construção do conhecimento a partir da vivência do aluno, continua ignorando a rede de relações de saberes que esses alunos podem tecer.
A fala desse aluno me revela, não só, sua "capacidade" de construção de conhecimento, como sua argumentação no embate entre as diferentes "verdades". Ao me perguntar se eu queria o fato científico ou o que ele realmente acreditava, ele me dá pistas de sua análise crítica frente a "verdade científica". Ele mostra-me que a escola vem sendo um espaço de perpetuação de conhecimentos que privilegiam uma certa visão de mundo e que exclui tantos outros saberes.
Ao me dar a opção de escolha, ele mostra-me que aprendeu a resistir e que, muitas vezes, o seu não-saber é uma forma de sobrevivência num espaço que não lhe dá voz.
Assusto-me ao perceber que não sabemos ver, ouvir, sentir o que nossos alunos tentam nos fazer entender. Ao negar as outras formas de conhecimento, perpetuamos a lógica excludente da escola pública que, apesar de incluir quantitativamente os alunos, não inclui as suas leituras de mundo. Apesar das classes populares estarem hoje "fisicamente" dentro das escolas, seus saberes, suas verdades ainda ficam do lado de fora do portão.
A seleção dos conhecimentos, ainda pautada na verdade científica, contribui para que os "fatos científicos" sejam utilizados pelos alunos como uma estratégia de sobrevivência dentro da escola, ao invés de serem parte de uma efetiva construção de conhecimentos.
Abrir os portões da escola pública para os saberes de seus alunos é o primeiro passo para a construção de uma escola efetivamente democrática, pois de nada adianta falarmos em democracia, se esta não incluir os diversos saberes constituintes do cotidiano.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Lana Fonseca
Professora de ciências da Rede Municipal de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Grupo ALPHA, Universidade Federal Fluminense
Lana Fonseca
Professora de ciências da Rede Municipal de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Grupo ALPHA, Universidade Federal Fluminense

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo