BICENTENÁRIO DE KANTA experiência sensível assumiu em Kant uma grande centralidade estratégica no plano da viabilidade metodológica do conhecimento e da acção, não só por força das virtudes científicas que se vinha reconhecendo ao método indutivo, como especialmente por força dos ventos que sopravam no plano social e político, propícios à exaltação da liberdade e à proclamação dos bens sensíveis?Há semanas atrás, alguma imprensa diária referiu com certo relevo o segundo centenário da morte de KANT (1724-1804). Essa invocação, apesar da diversidade dos pontos de vista dos autores dos respectivos textos, tinham em comum a preocupação de pôr em evidência o contributo do filósofo para a definição e afirmação daquilo que viria a ser a tendência civilizacional dos séculos dezanove e vinte e que ficou conhecido pela expressão de Modernidade. Num contexto socio-cultural, como é o do nosso tempo, em que o efémero agita freneticamente o quotidiano em que nos movemos (ou que nos move), quase só por ironia ou absurdo se poderá assinalar esta ?efeméride?, um pouco como se ela servisse para ilustrar o contrário daquilo em nome do qual ela é invocada...Na verdade, se alguma coisa caracteriza o pensamento de Kant é a sua dependência da Razão, ou seja, a sua obediência a uma lógica de pensamento e acção em que o sensível (o efémero) seja ordenado em função do seu contributo para o reino do homem como ser soberano. Importa, todavia, modular este enunciado para que não se pense que entre a Razão e o sensível há uma relação de estranheza e exterioridade no processo de desenvolvimento das condições de possibilidade do pensar e agir do ser humano. Longe disso, a experiência sensível assumiu em Kant uma grande centralidade estratégica no plano da viabilidade metodológica do conhecimento e da acção, não só por força das virtudes científicas que se vinha reconhecendo ao método indutivo, como especialmente por força dos ventos que sopravam no plano social e político, propícios à exaltação da liberdade e à proclamação dos bens sensíveis...Embora se trate de dois planos distintos, eles não se excluem na reflexão kantiana, bem pelo contrário... Conferir legitimidade científica ao conhecimento do sensível de modo a torná-lo não apenas provável, mas necessário à escala humana; fundar a liberdade dos homens como constitutiva da sua dignidade incondicional não só da parte de cada um face a si mesmo, como face a todos os outros seus iguais, resgatar a prática social tanto dos caprichos da natureza, como da metafísica que deles se alimentava, como, ainda, dos poderosos que desta se valiam, tal o programa unitário que Kant se impôs edificar. Programa ambicioso se pensarmos que o edificou, por um lado, contra a metafísica e contra a natureza, isto é, contra as duas forças que secularmente dominaram a civilização humana e, por outro, apenas a partir de dentro da própria história dos homens, projectando-a sobre um futuro de emancipação colectiva. É essa a função da razão kantiana, a de reflectir sobre a experiência e propor as condições de superação do estado de natureza, o que constitui um imperativo social e ético, condição de sobrevivência da espécie humana. Neste sentido, dialecticamente, é a própria natureza conflitual que gera a Razão. Diz Kant que ?através da discórdia (a natureza() faz surgir a harmonia, mesmo contra a sua vontade? (1988:140). Vemos assim que a razão não é concebida como um princípio exterior e indiferente à natureza humana, mas enquanto poder da condição humana para superar as contradições da sua mesma natureza na busca de um regime de autonomia. Entenda-se, entretanto, que esta autonomia, do ponto de vista estratégico e conceptual, muito pouco terá a ver com a autonomia que ocupa hoje grande parte do discurso educativo da doutrina oficial (e não só) da educação. E essa não é uma menor razão para que esta evocação de Kant não seja apenas um exercício piedoso contra o esquecimento. Trata-se de uma autonomia assumida ao nível da espécie humana, social e politicamente constitutiva do processo de hominização, como projecto histórico, o que é particularmente visível nos textos em que Kant trata das relações políticas e sociais no plano da construção do bem comum e da preservação da paz como bem social fundamental. Este sentido de autonomia da razão humana supõe o reconhecimento da humanidade como um sujeito universal e não apenas o do indivíduo como átomo psicológico afirmando-se concorrencialmente contra o outro. Que melhor maneira para acabar esta breve nota sobre Kant do que dar-lhe a palavra, que ninguém diria ser já velha de dois séculos, tal a gritante actualidade que transporta: ?Os exércitos permanentes devem, com o tempo, desaparecer totalmente, pois ameaçam incessantemente os outros Estados com a guerra em virtude da sua prontidão para aparecerem sempre preparados para ela; os Estados estimulam-se reciprocamente a ultrapassar-se na quantidade de mobilizados que não conhece nenhum limite, e visto que a paz, em virtude dos custo relacionados com o armamento, se torna finalmente mais opressiva do que uma guerra curta, eles próprios são a causa de guerras ofensivas para se libertarem de tal fardo; acrescente-se que pôr-se a soldo para matar ou ser morto parece implicar um uso dos homens como simples máquinas e instrumentos na mão de outrem (do Estado), uso que não se pode harmonizar bem com o direito da humanidade na nossa própria pessoa? (In A Paz Perpétua e outros escritos. Lisboa: Edições 70, 1988: 121/2).
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