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Que mais vamos pedir à escola?

A crítica mais repetida centra-se na incapacidade da instituição escolar em dar resposta às transformações tecnológicas e produtivas. Contudo, não faltam também opiniões, frequentemente vindas dos sectores reaccionários, que acusam o sistema educativo de incapacidade para preservar os valores humanistas fundamentais para garantir a convivência democrática?

Uma das consequências visíveis da permanentemente denominada ?crise educativa? manifesta-se na acumulação de responsabilidades e tarefas que exigimos à escola como instituição. Já se sabe que em situações complicadas a pior parte cabe sempre ao ?irmão mais pobre?, e não há dúvida de que o sistema educativo e a escola em particular têm vindo a desempenhar este papel de forma recorrente, praticamente desde os anos setenta. A crítica mais repetida centra-se na incapacidade da instituição escolar em dar resposta às transformações tecnológicas e produtivas. Contudo, não faltam também opiniões, frequentemente vindas dos sectores reaccionários, que acusam o sistema educativo de incapacidade para preservar os valores humanistas fundamentais para garantir a convivência democrática. Deste modo, se há violência juvenil, pouco respeito pelo meio ambiente, indiferença à política, intolerância ou falta de respeito em relação aos adultos, tudo se fica a dever às limitações da escola em responder à ?crise de valores? em que estamos, também permanentemente, submersos.
Li nos últimos dias nos jornais catalães que a intenção da nova Conselheira do Interior do Governo Catalão era criar uma disciplina obrigatória de educação rodoviária nas escolas. Assisto estupefacto a campanhas institucionais promovidas pela câmara da minha cidade com o objectivo de fomentar o civismo dos cidadãos, e, mais uma vez, descarregando também a campanha nas escolas. Contemplei alucinado como o anterior governo catalão, com uma importante participação dos democratas-cristãos, lançava a  ideia de colocar máquinas de venda de preservativos nas escolas secundárias ante o nervosismo dos bispos. Por outro lado, fico deprimido ao ver que enquanto a França procura a forma de confirmar o laicismo do seu sistema educativo, o governo conservador de Espanha confere à disciplina de religião o carácter de disciplina avaliável. Tudo cabe na escola. Conhecimento, valores, competências, atitudes, comportamentos, a escola converteu-se no espaço onde, por defeito, famílias e instituições depositam as suas incertezas ou as suas incompetências. Quando não se vislumbra a luz no fim do túnel, quando não se sabe a quem recorrer para gerir a crise, nada melhor do que um programa educativo que trabalhe desde as raízes da socialização tudo aquilo que corre o risco de converter-se em anomia.
Especialmente chamativos são os problemas que têm que ver com o ?descaminho? da juventude. Aqui a escola adquire um carácter de depósito geral. O alcoolismo, a dependência das drogas, a violência, a irresponsabilidade juvenil em geral, passam a ser problemas que geram na opinião pública a inevitável sentença ?não sei o que lhes ensinam na escola?, como se as causas de tudo isso tivessem que ver com a incompetência dos professores para transmitir valores ajustados à norma social. A falta de respostas sobre o distanciamento social da juventude traduz-se assim num aumento da pressão sobre as nossas instituições educativas, que não só devem formar indivíduos capacitados para o nosso sistema produtivo, mas também devem assumir a educação de todos aqueles que escapam aos mecanismos tradicionais de controlo social. A adultocracia esconde assim a pergunta que efectivamente a compromete: ?E o que é que esperavas?? O que pode esperar-se de um sistema social que exclui os jovens do acesso à habitação, da participação política efectiva e do trabalho?
A pressão sobre a escola está a alcançar o seu grau máximo ao mesmo tempo que o processo de proliferação de políticas públicas neoliberais, geradoras de exclusão social, se acelera. Sem contratos estáveis, sem casas para alugar, com escassa liberdade de expressão, não é de estranhar que se multipliquem as respostas que se rebelam activa ou passivamente perante um conjunto de promessas cuja credibilidade não é sustentada pelos factos. O recurso à escola actua como mecanismo amortecedor do mal estar social e como bode expiatório a quem há que exigir responsabilidades. Paradoxalmente, em tempos de enorme desenvolvimento tecnológico e de renovação constante do saber, em tempos de discursos sobre educação permanente e ao longo da vida, parece que o papel principal que tornamos a atribuir à escola é o mesmo que deu lugar ao surgimento dos sistemas educativos públicos: o dispor de uma instrução com a autoridade moral suficiente para moldar as atitudes e as consciências dos cidadãos, ou, o que é o mesmo, para garantir que a complexidade da sociedade do conhecimento não gere anomia e exclusão social. Uma triste função em tempos de globalização.
Até onde pode ir a escola para facilitar a gestão de outras crises? Até quando os professores continuarão a assumir múltiplas tarefas a que, muito simplesmente, não podem responder? Parece que o depósito escolar dispõe de membranas flexíveis capazes de assimilar tudo o que lá dentro se pretende deitar... mas um dia qualquer a educação vai acabar por explodir debaixo dos nossos narizes.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Xavier Bonal
Universidade Autónoma de Barcelona
Xavier Bonal
Universidade Autónoma de Barcelona

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