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Um desafío à ética docente?

AVALIAR FUNCIONÁRIOS

Reportamo-nos [aqui] muito concretamente a alguns problemas importantes que, a nosso ver, os actuais propósitos e processos de definição de uma legislação sobre avaliação do desempenho de funcionários suscitam?

Os desafios éticos não são lançados aos professores e aos educadores em geral apenas pela relação directa que estes mantêm com os seus educandos. Decorrem também, por exemplo, da sua inserção na comunidade local e na sociedade a que pertencem. Ora, é precisamente de um contexto que ultrapassa as fronteiras estritas do universo educativo que agora emergem constrangimentos importantes que inevitavelmente nos têm de levar a colocar algumas interpelações de natureza ética. Reportamo-nos muito concretamente a alguns problemas importantes que, a nosso ver, os actuais propósitos e processos de definição de uma legislação sobre avaliação do desempenho de funcionários suscitam neste capítulo.
Importa, desde já, clarificar que:
- O mérito tem de ser valorizado em benefício das pessoas que demonstrem possui-lo e da sociedade que vai usufruir dos seus resultados.
- O mérito tem de ser objectivado segundo critérios pertinentes e avaliações credíveis; nunca por força de expedientes subjectivos ou burocráticos.
- A avaliação tem de ser motivadora de evoluções e de reconversões, potenciadora de percursos que importa manter e reforçar, em lugar de incutir estigmas e frustrações.
- Em poucas palavras, uma qualquer avaliação tem de ser credível para todos, coerente com as exigências profissionais e inteligível para os avaliados.
Estes princípios gerais servem, portanto, a própria avaliação específica dos professores.
Todavia, quando, pelas informações disponíveis, ficamos a saber que algumas das classificações previstas para a hierarquização das competências dos funcionários públicos, designadamente as de ?excelente? e de ?muito bom?, ficarão sujeitas a contingentações da ordem dos 5 e dos 10%, respectivamente, então, são já grandes as preocupações que se levantam.
Percebe-se bem que as razões que estão por detrás destas limitações têm a ver, nem mais nem menos, com a preocupação de se evitar a distorção da distribuição das classificações por inflação das mais altas. Inflação que, a ocorrer por motivos alheios à verdade do processo, é, a todos os títulos, lamentável. Mas é igualmente verdade que não se pode combater uma perversão do sistema à custa da introdução de graves anomalias nesse mesmo sistema ou em algumas das suas vertentes como será aqui o caso dos professores.
Antes de mais:
- Porquê 5% e 20% e não 10% e 25%, 6% e 19% ou 20% e 5%? ...
- Por que razão não se contingentam também as classificações mais baixas? Apenas por não acarretarem aumentos de despesas ou até por trazerem a sua diminuição?...

As intuições de senso comum não são aqui admissíveis.

No caso das escolas, o que vai acontecer ao trabalho em equipa e à realização de projectos educativos? Mesmo que tributários de ideais, será que estes deixam de ter legitimidade? Como conciliar a negociação, a conflitualidade, a busca de consensualidade, etc., com o frenesim imaginável de uma corrida às classificações que implacavelmente imponha que para uns estarem dentro (do topo e das suas vantagens) outros terão que ficar de fora?
Se aceitarmos ? como teremos, aliás de o fazer ? que se educam civicamente as crianças e os adolescentes fundamentalmente pelas práticas e pelos exemplos, que irá acontecer à solidariedade e ao espírito de partilha e de entreajuda quando aqueles sentirem que os seus educadores não cooperam, nem podem cooperar, porque estão em jogo carreiras e remunerações em que uns vão ter de ser predadores sobretudo dos que estão mais próximos? A cooperação, antes de promover os outros e o grupo, será olhada por cada um como sua inimiga.
E aqui está uma questão educativa que não poderá ser calada por ser incómoda do ponto de vista da pragmática política: a ética dos princípios educativos e a deontologia profissional passaram a estar claramente em causa...
Duas perguntas para finalizar:
- Não significará esta pretendida contingentação uma descrença a priori na seriedade e rigor dos avaliadores e dos critérios a utilizar?
- E porque a comparação com outras situações poderá ter sempre um efeito de choque: que pensariam as pessoas se fossem impostas quotas para a atribuição de distinções honoríficas ou para a consagração de beatos e de santos ou ainda para a avaliação e classificação dos ministros ?...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto
Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto

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