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Os dias do fim do cerco

Algures, em 12 de Setembro de 2007,

Querida Alice,

Nesta carta te darei notícias do fim do cerco, notícias calmas, não as de uma esperada agonia. Também te falarei da generosidade dos pelicanos.
Como te disse na última carta, pássaros de todas as cores e origens acorreram a proteger a escola das aves. A voz de milhares de pássaros atravessou o cerco, fez-se ouvir para além das ameaçadoras nuvens que pairavam sobre uma escola onde algumas gaivotas velavam pela sorte de centenas de aves indefesas.
Ainda que algumas aves do desperdício ainda esboçassem derradeiros intentos predadores, a escola das aves resistia. Enquanto um ou outro papagaio hipotecava a alma a troco de favores de passarões mandantes e continuava a espalhar boatos, as gaivotas recuperavam ânimo na contemplação do pôr-do-sol, cada dia diferente de outros dias, sempre belo e gratuito, cada noite anunciando dias mais claros e céus mais azuis. Nada logravam as vozes de aves agoirentas contra a limpidez do canto de milhares de solidárias aves.
Entre as aves doentes que cercavam a escola das gaivotas resistentes, os excessos de infâmia eram comuns. Mas as malévolas investidas eram serenamente repelidas pela tranquilizadora quietude dos pelicanos. Durante todo o tempo que durou o cerco, esta ave destacou-se pela sua capacidade de dedicação e sacrifício. Meditarás, querida Alice, sobre o facto de este teu avô atribuir humanos nomes a ornitológicos seres. É porque não me sobra engenho para reinventar a adulterada linguagem dos homens (um pássaro perfeito, que para sempre se perdeu nos desertos de África, escreveu que a linguagem dos homens passou a ser fonte de mal-entendidos). Nem conseguiria lograr alcançar a compreensão de ocultos saberes que só as aves preservam ? entre os quais avultam o da simplicidade e o do amor pelas rosas ? para que pudesse atribuir o exacto nome à exacta essência. Confessada a minha incapacidade para ascender aos limites apenas alcançados pela sensibilidade dos pássaros, chamemos Manuel ao nosso pelicano (em hebraico, Manuel significa Immanu-el, ?Deus connosco?). Pois, se este pelicano representava todos os pais das jovens aves, bem poderia ser considerado o pai entre pais.
O chefe dos pássaros, talvez enganado pelos abutres, havia quebrado promessas feitas e deixara a escola das aves sem condições de dar abrigo aos jovens aprendizes de voar. Mas, quando os sitiadores já se convenciam de que a ignomínia compensa, os céus antes tingidos pela ignorância e a crueldade de tenebrosos pássaros readquiriram novos e luminosos novos matizes, quando afagados pelos ecos da bondade dos pelicanos que se mantinham atentos ao evoluir da tempestade. O pelicano Manuel quase não dormia. A noite surpreendia-o postado diante da escola. A manhã seguinte era testemunha da sua presença vigilante.
A heráldica representa o pelicano de pé, asas abertas, abrindo o peito com o bico, dele escorrendo gotas de sangue com que sustentam os filhos. É verdade, Alice, algumas espécies chegam mesmo a deixar-se devorar pelas crias. Morrem para dar vida. E o pelicano Manuel estava mesmo decidido a pôr em risco a sua vida, se preciso fosse, para que os filhos de todos os pássaros não ficassem órfãos de ternura.
Quanta bondade cabia nas asas deste pelicano! Absorvido pelo cuidar dos outros, não cuidava de si. E confiava, cegamente confiava que a bondade habitava todas as almas. O pelicano Manuel não intuía fraquezas, dissimulação, ou maldade nos gestos de outros pássaros. Observava as aves do céu, que não semeavam, nem segavam, nem ajuntavam alimento em celeiros. E cultivava a mesma esperançosa canseira da ditosa infância que recolhe pássaros caídos dos ninhos, deles cuidam com esmero, e os soltam logo que recuperam o dom de voar. Era assim este maravilhoso pelicano. E, talvez por força da sua estranha fé, algo inesperado aconteceu: gaivotas de uma outra escola abriram as suas portas à magia das gaivotas da escola das aves.
Porque outras escolas também eram habitadas por gaivotas. Em todas as escolas as havia, ainda que discretas, aferrolhadas numa sala ? não fosse o diabo tecê-las e algum pássaro porquenim espreitasse e fosse contar pecadilhos a um porquenão. Ano após ano, estas clandestinas gaivotas de outras escolas fingiam ensinar a todos como se fossem um só, num equilíbrio precário, quase a soçobrar perante a perfídia dos porquenãos. E foram estas gaivotas solitárias que manifestaram o ensejo de acolher duas gaivotas e alguns pássaros aprendizes da escola das aves.
As andorinhas resistentes avisavam as gaivotas de que seria arriscado construir ninhos em beirais alheios. Mas o pelicano Manuel não imaginava as gaivotas agindo como cucos usurpadores de ninhos. Convicto da bondade das gaivotas hospitaleiras, enviou mensageiros e lançou-se no afã de preparar a partida das jovens aves. O pelicano Manuel era assim: não abdicava da sua estranha fé, uma fé que lhe dizia não existir amor verdadeiro sem desprendimento e confiança.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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