"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" - já dizia Camões, face ao "desconcerto do mundo". . Mas dizia mais, que não passa pelos manuais escolares: Sobre os reis (...) "cujo estudo/é fartar esta sede cobiçosa/de querer dominar e mandar tudo/com fama larga e pompa sumptuosa"; os nobres (...) "que tomam por escudo/ os seus vícios e vida vergonhosa/a nobreza dos seus antecessores/e não cuidam de si que são piores"; os mercadores (...) "que estão co'a boca aberta/por se encher de tesouros de hora em hora/doentes desta falsa hidropisia/que quanto mais alcança mais queria"; e os poderes: (...) "Da feia tirania e vã severidade/Leis em favor do rei se estabelecem/As em favor do povo, só, perecem." Era a reflexão de um Poeta atento ao mundo que o rodeava, baseada quer nas leituras dos clássicos humanistas, quer na sua experiência de calcorreador das margens do Mar Oceano onde o Português já havia deixado as marcas dos pés - Marrocos, India, Macau, Moçambique, - quer na síntese que fazia "entre" Babel e Sião, "onde vi quantos enganos/faz o tempo às esperanças." Mas era também como que a reflexão premonitória sobre vícios e equívocos endémicos que levariam às "mudanças" que já se perfilavam nos dois últimos anos da sua vida, quando, após a morte de D.Sebastião em Alcácer Quibir, os candidatos ao trono dirimiam com Filipe II de Espanha o direito à sucessão, o que significava decidir se Portugal conservaria a sua independência ou regressaria ao domínio de Castela. Camões morreu em 1580, no mesmo ano em que o reino de Portugal foi integrado numa região de Espanha com a capital em Mérida, desfrutando de uma formal autonomia administrativa que tinha como figuras de proa, cúmplices de Castela, a duqueza de Mântua, governadora do reino, e o conde-duque de Olivares, Miguel de Vasconcelos, secretário de Estado. Com a recuperação da independência, em 1640, a primeira teve de fugir para Espanha e o segundo, com menos sorte, foi morto pelos revolucionários "restauradores" dentro do armário onde se escondera. Apesar dos coágulos que ciclicamente obstruiram o circuito sanguíneo da Nação, Camões nunca imaginaria, porém, que os portugueses, por acção dos tempos sobre as vontades, - depois da resistência de Viriato contra o imperialismo romano; do empenhamento de Afonso Henriques na independência do condado portucalense do domínio de Leão e Castela; das frustradas arremetidas castelhanas e napoleónicas; até o País se afirmar finalmente formatado como o Estado-Nação mais antigo da Europa e o último titular de um império colonial que "foi além da Taprobana" - pudessem rever-se distribuidos por duas ou três regiões integradas numa Ibéria multiétnica, como efabula o empresário José Manuel de Mello, ou, seguindo a mesma linha de raciocínio, como dramatiza José António Saraiva, jornalista-director do semanário EXPRESSO, - onde ambos vertem o seu pessimismo face ao estado actual da Nação - julgando interpretar o sentimento de quem se interroga, apocalipticamente, "sobre se valerá a pena o país continuar a existir ou se não será mais sensato integrarmo-nos na Espanha, porque os espanhóis nos governariam melhor." Camões nunca magicaria em tal coisa, a quinhentos anos de distância, mesmo como chicotada psicológica, que lhe soaria a uma afrontosa perversidade, pois só se prelecciona o que se teme ou se deseja. E hoje, se fosse vivo, também não o admitiria o seu orgulhoso ego lusitano, porque, como Poeta e Guerreiro, encontraria seguramente um antídoto contra os venenos dos tempos de mudança, fosse propagando a crítica marxiana de que o capital não tem pátria; fosse alinhando nos movimentos emancipalistas de galegos, bascos ou catalães; fosse invocando, como provocação, as lutas seculares e continuadas dos povos da África, da Ásia e da América pela preservação das suas nacionalidades contra uma congeminação mundial que, a pretexo do Progresso, os pulveriza e ensandece; fosse simplesmente juntando a sua voz ao coro dos que, em várias partes do mundo, se reúnem em Fóruns internacionais para afirmar que nem a História da humanidade chegou ao fim, nem as Ideologias morreram e que mudar o mundo (e Portugal) é possível. Num primeiro momento de desânimo, diante de "gente surda e endurecida", talvez o Poeta fosse tentado a reconhecer que "O favor com que mais se acende o engenho/Não nos dá a pátria, não, que está metida/No gosto da cobiça e na rudeza/De uma austera, apagada e vil tristeza". Mas logo a seguir, recuperando as ideias que formara sobre "os Alemães, soberbo gado", o "duro Inglês", o "Galo indigno" e a "Itália já submersa em vícios mil", haveria de reconverter o ânimo desfalecido num esperançoso grito de alma: "Mas, entanto que cegos e sedentos/Andais de vosso sangue, ó gente insana,/Não faltarão cristãos atrevimentos/Nesta pequena casa lusitana." Ai, Camões...
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