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Ao encontro da comunidade cigana

PROJECTO NÓMADA

Surge em meados dos anos noventa, na região de Setúbal, como forma de contribuir para a escolarização, alfabetização e valorização das comunidades ciganas, através da criação de uma rede integrada de escolas e de organizações. Quase dez anos passados sobre o seu lançamento, o Projecto Nómada implica cerca de cem professores, educadores e animadores e mais de mil crianças, jovens e adultos ciganos. Para conhecer mais de perto este projecto, desenvolvido no âmbito do Instituto das Comunidades Educativas, a PÁGINA conersou com Mirna Montenegro, educadora de infância e coordenadora nacional do Nómada.

De que forma se inicia o projecto Nómada e qual o seu propósito?

O projecto Nómada parte da minha iniciativa e de uma colega, ambas educadoras de infância, ao constatarmos, em 1992/93, que um número considerável de crianças e jovens ciganos que tinha abandonado a escola ou nunca a tinha frequentado, se deslocava com alguma assiduidade ao Centro de Animação Infantil e Comunitária (CAIC) da Bela Vista, em Setúbal.
De forma a aproveitar a motivação destas crianças para a aprendizagem ?das coisas da escola?, elaboramos um projecto de alfabetização informal e comunitária, financiado pelo então Instituto de Inovação Educacional. O projecto obteve o destacamento de duas professoras do 1º ciclo para alfabetizar trinta crianças e jovens ciganos, irmãos de outras que, no mesmo espaço e tempo, frequentavam o CAIC.
E como cada novo projecto surge no contexto do anterior, foi com a experiência adquirida no âmbito deste trabalho de alfabetização informal que se concebeu o Projecto Nómada, no ano lectivo de 1994/95 - que correspondeu ao meu estágio da licenciatura em Ciências da Educação -, com a finalidade de promover as comunidades ciganas e de transformar a escola.
Iniciado no ano seguinte, sob a responsabilidade institucional do Instituto das Comunidades Educativas (ICE), o Nómada foi desenvolvido com o intuito de levar diversas escolas a produzir um levantamento acerca dos motivos que levavam à ausência das crianças e a descobrir eventuais regularidades nos espaços e nos tempos.
Através desse levantamento, propôs-se criar um dispositivo que colocasse em rede as escolas que tivessem crianças nessas condições, trocando experiências e informações pertinentes em busca de soluções para fazer face ao absentismo, insucesso e abandono escolar precoces. Pretendeu-se que esse dispositivo fosse construído em interacção entre os docentes e as famílias directamente interessadas.
Foi com o Rendimento Mínimo Garantido que as escolas se viram a braços, de um momento para outro, com um número muito considerável de crianças de etnia cigana, com idades compreendidas entre os nove e os dez anos, a frequentar o 1º ano de escolaridade. No ano seguinte, o Nómada viu duplicar os pedidos de formação sobre a cultura cigana e sobre as estratégias mais adequadas para dar resposta a esta solicitação.

Qual é a rede de parcerias que envolve o projecto e em que âmbito geográfico se desenvolve?

No seu momento de maior expansão, entre 1997/98 e 2000/01, o projecto Nómada implicou mais de cinquenta organizações distribuídas por diversas localidades do sul do país, como Almada, Seixal, Setúbal, Beja, Ferreira do Alentejo, Serpa, Mértola, Moura, Faro, Portimão, Lagos, Lagoa e Algoz.
Ao longo dos seus nove anos de existência, implicou mais de 350 profissionais de diferentes formações - professores, educadores, animadores, mediadores e técnicos das autarquias - e estabeleceu parcerias, na sua maior parte assentes em relações informais, com instituições a norte do país (Rede Europeia Anti-Pobreza/ Norte, Olho Vivo de Braga, Associação Cigana de Coimbra, União Romani Portuguesa) e a nível internacional (CRT de Paris, UNISAT, Save The Children da Grécia, Pavee Point da Irlanda). Também estabelecemos parcerias de colaboração com o então Secretariado Entreculturas.
Ultimamente tem-se verificado um período de contracção do projecto que se deve, na minha opinião, a dois contextos: por um lado, a constituição dos agrupamentos escolares, que reduziu consideravelmente a capacidade de mobilização e de autonomia dos professores, reforçando as tarefas burocráticas em detrimento das tarefas pedagógicas; por outro lado, à quase compulsiva formação dos professores nos cursos de complemento de formação, que vem também absorvendo as energias dos nossos melhores docentes e educadores.

Que iniciativas são desenvolvidas no âmbito do Nómada?

Sendo o Nómada um processo progressivo de apropriação pelos seus diversos protagonistas, as suas iniciativas foram sendo desenhadas com os contributos dos seus parceiros. A Animação de Mercados, por exemplo, nasceu em parceria com o ATL da ACSA no Algoz, tendo-se replicado em Moura e em Serpa através da "Roda do Guadiana"; a Animação de Rua com o Centro  Comunitário "Várias Culturas Uma Só Vida", da Arrentela, e com a Divisão Social da Câmara Municipal de Setúbal.
Outra das iniciativas, o Jornal Andarilho, viu a luz do dia através da iniciativa de uma estagiária da licenciatura em Ciências da Educação. Houve também espaço para a constituição, dinamização e promoção de grupos culturais ciganos, como "Os Barões", com o Departamento da Cultura da Câmara de Setúbal, e "As Zíngaras", com a Associação de Mulheres Ciganas do Seixal.
Por outro lado, desenvolvemos, através do Centro de Formação "Comunidades Educativas", acções de formação na área da ecologia junto de vários professores, que será porventura a iniciativa que mais de perto tocou directamente as escolas e pode influenciar o seu desempenho, por intermédio do envolvimento e da transformação dos docentes.

Ao que julgo saber, o projecto recorre a mediadores culturais oriundos da comunidade cigana para apoiar as suas iniciativas. Em que medida o papel destes é importante no sucesso do Nómada?

O projecto Nómada não recorre a mediadores culturais para apoiar as actividades desenvolvidas no seu âmbito. Foram as actividades que foram sendo desenvolvidas que "descobriram" os mediadores culturais que outras instituições foram formando.
Digamos que nós procuramos rentabilizá-los como é o caso das cinco mediadoras (agora já são sete) que constituíram a Associação de Mulheres Ciganas do Seixal em 2000. Ou o caso de pessoas de etnia cigana que, não tendo cursos de mediadores, são pessoas que desempenham esse papel, e de outros que as nossas parcerias também vão desocultando.
O que se pretende é que as várias instituições parceiras aprendam a aprender com as comunidades com quem trabalham e aprendam a descobrir e a rentabilizar os interlocutores das comunidades onde estão inseridas. O nosso objectivo é que os nossos parceiros - que são os nossos intermediários junto das comunidades ciganas ? aprendam a ser mediadores entre duas culturas, aprendam a ser tradutores de culturas para facilitar o diálogo entre as pessoas que, depois de se conhecerem, até descobrem que afinal não são tão diferentes assim.

Que resultados práticos foram obtidos junto da comunidade cigana através deste projecto?

O projecto Nómada só trabalha directamente com as comunidades ciganas na animação de rua e nos mercados. Nesse âmbito, pode dizer-se que conseguiu-se que estas famílias confiassem em nós, confiando-nos o seu bem mais precioso - os seus filhos - legitimando a nossa actividade sócio-educativa. Indirectamente, através dos nossos intermediários, que são os vários profissionais que trabalham connosco e que pertencem à nossa rede, pode dizer-se que se pretende que estes aprendam a aprender com os seus destinatários. Que os escutem a sério. Ao fazê-lo mudam de postura, de atitude mental. Não nos esqueçamos que o maior problema com as comunidades ciganas são os preconceitos e estereótipos que temos acerca deles, não nos deixando aproximar para melhor nos conhecermos e respeitarmos mutuamente.

Que outros projectos estão previstos a médio/ longo prazo?

O projecto chegou ao seu último ano, tal como foi concebido em 1994/95. Neste momento estamos a fazer a sua avaliação participada, assente em 5 dimensões de análise: os afectos, os eventos, as influências, os efeitos e os conceitos. Este processo participativo de avaliação pretende também contribuir para a constituição de uma equipa mais vasta, que - no caso de isso vir a acontecer - conceberá um novo projecto ou reformulará o actual dando origem ao Nómada II.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Mirna Montenegro
Educadora de Infância e Coordenadora Nacional do Nómada
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Mirna Montenegro
Educadora de Infância e Coordenadora Nacional do Nómada
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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