Para o Alberto, Aurora, Conceições, Isabel, Júlio e Lurdes, pois arriscámo-nos a ser os últimos professores de Matemática da ?Soares dos Reis?
Em 2003 a Associação Atractor realizou no Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto uma exposição dedicada ao "mundo da simetria." Como roteiro da referida exposição foi editado um livro, "O ritmo das formas". Na sua apresentação os editores escrevem: "(...) Narra uma viagem guiada pela matemática, que, como disciplina incumbida de representar o mundo real sob a forma abstracta, pode oferecer‑nos uma acuidade de visão suficiente para detectarmos a harmonia oculta em formas aparentemente distintas, e ajudar‑nos a descobrir uma chave de leitura significativa, uma possibilidade de pôr ordem nos "emaranhamentos" de que fala Gombrich." Num dos vários artigos apresentados neste "roteiro", aparece um em forma de entrevista com (de) Michele Emmer ‑ matemático, escritor, realizador de cinema, jornalista, organizador de exposições. Um dos seus filmes vai passar na série "Arte e Matemática" a passar na "Dois" aos domingos. Aqui estão algumas transcrições: "O cinema é uma espécie de engenhoca que nos faz entrar num mundo "geométrico" à parte, onde quem dirige dita, em certo sentido, as regras. Sob a direcção do realizador a máquina de filmagem comporta‑se como um operador geométrico que "armazena" imagens para as quais o realizador decide antes de mais, com base no seu próprio gosto e nas suas inclinações, qual deve ser o ponto de vista privilegiado. (Os espectadores deverão aperceber‑se o menos possível desta intervenção e deverão julgar que as imagens que lhe são apresentadas são as mais naturais, as mais "justas" possíveis. Quanto mais espontâneo um filme parecer, mais hábil o realizador terá sido a filmá‑lo.) As imagens são depois modificadas com a montagem, a dobragem, os efeitos especiais e enfim projectadas numa tela plana: fazer cinema consiste, de certo modo, no reduzir a realidade tridimensional a uma película bidimensional e devolvê‑la ‑ através da projecção que recria o efeito tridimensional ‑ filtrada pelo olho do realizador. Todas estas operações pressupõem escolhas que não são de modo algum neutras e nas quais a simetria tem um papel importante já a partir do dado objectivo ligado ao formato. O formato cinematográfico é de facto rectangular e portanto as imagens devem ser pensadas "mais largas que altas".( Mesmo se uma das grandes invenções de Orson Wells com "Quarto Poder" tenha sido aumentar no sentido da altura as imagens, mostrando o tecto ‑ que antes nunca se via no cinema! ‑ para dar a ideia de potência, de poder.) O formato estabelece regras para as cenas, incluindo aquela fundamental de que tudo se desenrola num rectângulo mas deve parecer que se passa noutro lugar; ninguém se deve aperceber de que está simplesmente a ver uma sombra projectada por uma lâmpada a partir de fotogramas que passam sobre um rolo, acompanhado de música. O cinema é disfarce, mas não deve aparecer como tal. As cenas devem ser arquitectadas, mas sem o mostrar: não devem ser demasiado cheias nem demasiado vazias; no primeiro caso parceria teatro, no segundo cinema pobre e banal. Por outro lado a simetria intervém também ao regular as relações entre a cenografia, o movimento, as partes descritivas, as partes de diálogo e entre todos estes elementos e a duração da história. O tempo é de facto um elemento na organização do filme: o cenário, a história, as imagens são formadas utilizando o tempo, tempo descontínuo que deve dar a impressão de ser contínuo. Um segundo corresponde a 24 imagens e a duração total não deve superar 90‑150 minutos. A montagem tem por isso de harmonizar as cenas, criar um equilíbrio, gerar uma ordem que frequentemente é ditada por exigências de simetria, ainda que não demasiado rígida. (De qualquer modo, na história do cinema, têm grande importância também as situações em que se realiza uma rotura desta simetria: por vezes o cinema que tenciona caracterizar‑se como antecipação, como inovação, fá‑lo justamente através da quebra de uma simetria.) (...) O cinema nasceu como cinema científico, para recolher movimentos que de outro modo não se conseguiam captar: um cavalo a galope, a harmonia de uma mulher nua em movimento. Não só se podem colher imagens não visíveis a olho nu, como se pode construir uma realidade que não existe: pode‑se visitar o reino dos mortos, pode‑se andar no microcosmos, sobre galáxias. Obviamente a realidade é fruto da fantasia. O importante é que seja sempre claro que toda a técnica está disponível para fornecer meios a uma ideia De outro modo fazem‑se vídeo‑jogos. E a imagem deve ser "necessária" senão é muito melhor um livro. E neste mundo de "potencialidades harmónicas" temos necessidade não só de ideias, mas também de normas: vêm‑me à mente as palavras de Ennio De Giorgi numa vídeoentrevista que me concedeu em 1966: "Precisamos de regras; em particular é necessário conhecer os instrumentos que se usam." No nosso contexto é preciso conhecer bem a máquina de filmar, a montagem, a dobragem, o ritmo da música e das palavras, não se pode improvisar. Para exercitar a fantasia é necessário ter regras. A liberdade sem leis frequentemente não produz nenhum resultado interessante. Recordo‑me das discussões há uns anos com Lucio Lombardo Radice a propósito do Festival de Cinema Jovem de Pisa. Ele e tantos outros sustentavam que era preciso colocar a máquina de filmar ou telecâmara nas mãos dos jovens sem os oprimir com regulamentos para não tolher a sua imaginação. Absolutamente falso! Assim produzem‑se só os filmecos caseiros dos japoneses ou os filmes que os docentes passam nos departamentos de televisão universitários."
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