Tem-se assistido nos últimos dias ao aparecimento de notícias e justificações para o encerramento das escolas com menos de 10 alunos ? escolas, em geral, localizadas em contexto rural ? que tendem a difundir a ideia de que uma vez integrados os alunos destas escolas estariam criadas as condições para uma racionalização da rede escolar e para que, finalmente, se poderiam criar as condições para se realizarem as promessas da escolarização. Neste processo redentor da escola e das suas promessas, desqualificam-se as potencialidades educativas dos contextos sociais, nomeadamente daqueles que, como os rurais, são estruturados por lógicas de proximidades e por relações intergeracionais densas, desqualifica-se a escola e as suas potencialidades como instância capaz de recriar e valorizar vivências, sociabilidades e cognitividades diversificadas e contextualmente pertinentes, ao mesmo tempo que se difunde uma visão mítica da escola urbana descontextualizada, que surge, sempre, como contraponto simbólico de uma escola degradada e degradante, de uma escola isolada, solitária e triste, com défices ?materiais e simbólicos? que, naturalmente, se degradou, como se as vitimas deste processo de degradação fossem os eus principais responsáveis. Mitifica-se, assim, uma escola urbana dotada de condições materiais e simbólicas que não existe, ao mesmo tempo que se ?naturaliza? o processo político de degradação material do processo de escolarização em meio rural, desresponsabilizando políticas educativas que perante a complexidade dos desafios deste processo de escolarização e a diversidade dos contextos rurais procuram uma resposta em torno da questão. ?E não será possível exterminá-los?? Compreende-se também que os actuais discursos educativos retomem, em parte, alguns dos pressupostos dos discursos que se desenvolveram durante o Verão perante a tragédia (para alguns?) dos incêndios que, tendo sido, objectos de uma mediatização intensa sempre que ameaçavam os arredores da cidade, abandonaram a cena mediática para se transformarem num ?fenómeno natural que regressa ciclicamente?. Na realidade, estes discursos. para além de acentuarem privilegiadamente os factores naturais ou culpabilizarem incontroladamente os comportamentos humanos inadequados como estando na origem dos incêndios, referiam ainda timidamente a necessidade de desenvolverem e aprofundarem as medidas de reordenamento florestal e de promoverem a ?defesa das paisagens?. Raramente mencionam o combate à desertificação humana das zonas rurais ou a preservação e distribuição das sabedorias populares que permitem proteger a floresta e possibilitam, ao mesmo tempo, a afirmação da cidadania daqueles que a habitam. Com o mesmo ar douto com que se realça a importância destas políticas de ordenamento, já se noticiava, hipocritamente, o encerramento das escolas com menos de 10 alunos como sendo uma imposição da realidade. Ou seja, com a mesma convicção afirma-se a necessidade de combater a desertificação como instrumento de ?preservação e de defesa da paisagem?, e louva-se as imposições de uma realidade que apela a decisões políticas tendentes a reforçar a desertificação que se diz querer combater. De uma forma insidiosa, os discursos dominantes tendem a ?naturalizar a ideia? de que o denominado factor humano constitui um óbice ao reordenamento do mundo rural devendo, por isso, ser reduzido ao mínimo imprescindível para a defesa da paisagem. Ora, a construção de uma alternativa a uma ideologia que subordina o direito à sociabilidade, à pertença e à felicidade aos ditames da competitividade económica e à preservação de uma natureza que só miticamente não é uma construção sócio-politica, exige que se pense a problemática da escolarização em meio rural encarando-a como um dispositivo de combate à desertificação e como possibilidade de construção de acções educativas que por serem permeáveis às circunstâncias locais e à densificação das relações sociais e intergeracionais, se afirmam como uma alternativa a um modelo de educação que a reduz a uma escolarização pautada e regulada pelos ditames de uma economia da competitividade. Estas alternativas não podem, portanto, fazer a economia do reconhecimento de que a escolarização em meio rural, por ser potencialmente propensa à produção de dinâmicas mais contextualizadas e mais permeáveis às circunstâncias locais, apela a que o exercício do dever de felicidade seja indissociável com o desenvolvimento de um trabalho educativo em torno da escola em meio rural, particularmente atento às suas potencialidades transformantes. O que neste caso está, com efeito, em causa é o reconhecimento de que, em meio rural, as promessas da escolarização exigiram da parte dos profissionais da educação a invenção de práticas profissionais que os desvinculavam do Estado para os inserirem nos contextos locais. Ou seja, nestes contextos, um trabalho educativo que procure assegurar o cumprimento das promessas da escolarização induz dinâmicas educativas localmente globalizadas que não se situam no prolongamento das lógicas dominantes na escola, mas apelam antes para uma des-escolarização da escola, para a sua subordinação aos processos de produção de contextos educativos simultaneamente ?localizados? e globalizados. Potencialmente, aí pratica-se a solidariedade entre as gerações, as relações inter e intracomunitárias e uma gestão sábia das tensões entre a pretensa universalidade dos saberes escolares e o carácter contextualizado dos saberes e das sabedorias locais. Ao recriar a complexidade da acção educativa e ao construir alternativas aos reducionismos e às arbitrariedades que marcam a concepção que a escola construiu dos mundos que a habitam, esta escola não pode esperar. Deste modo, ela experimenta modos de definição dos problemas e soluções inovadoras e emancipatórias que fazem dela um referencial da possibilidade da construção de uma escola cidadã, de uma escola que não se limita a formar cidadãos, mas é uma artesã da construção de novas cidades e novas cidadanias. Ao semearem ventos resultantes do encerramento compulsivo destas escolas, os actuais responsáveis políticos arriscam que as sociedades colham tempestades, cuja origem, convém, dizê-lo, não está em pretensos ?factores naturais?, nem na multiplicação de micro- incúrias, nem na agregação de um conjunto de comportamentos individuais inadequados...
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