Todos temos ideia que as tecnologias vão mudando ao longo dos tempos e que caracterizam as sociedades de uma determinada época influenciando os saberes, os hábitos e as interacções sociais que ficam marcadas por outros tipos de actividades, utensílios e locais de encontro. E, mesmo que alguns não possam ou não queiram incluir nas suas práticas novos artefactos tecnológicos, a sociedade incumbe-se de os divulgar e mostrar as suas vantagens relativamente aos antigos que, embora não deixem, em muitos casos, de existir e circular, são revitalizados ou remetidos para outros contextos de utilização.
Na verdade, generalizar a convivência com os poderosos meios tecnológicos da actualidade é um assunto complexo que deve ser pensado como prioritário na cultura contemporânea portuguesa. A tecnologia inclui artefactos de diversa natureza, com graus diferentes de vulgarização e utilização, exigindo alguns deles níveis consideráveis de abstracção e conhecimento. Contudo, é da familiaridade global de um quotidiano que inclui desde o micro-ondas à Internet, que se define a actualização e o avanço tecnológico de um país. Como diz A. Pacey, no seu livro Meaning in Technology, de 1999, ?a prática tecnológica não envolve apenas instrumentos, competências práticas e conhecimentos tecnológicos, mas também envolve uma dimensão política e organizativa e aspectos ?culturais? relacionados com valores e crenças?. É por isso importante o papel da instituição escolar ao nível da divulgação e do ensino das formas de utilização das tecnologias contemporâneas. Longe vai o tempo em que se pensava que desenvolvimento tecnológico e literacia eram assuntos não relacionados. Parece pois estranho que numa altura em que os desafios educativos começam a ser colocados pela familiaridade com o ciberespaço se afirme: ?desaconselha-se a utilização indiscriminada das máquinas de calcular nos 1º e 2º ciclos de escolaridade, dado que limita a aquisição dos automatismos de cálculo imprescindíveis à realização em tempo útil das tarefas cognitivas mais complexas?. Mas é exactamente isso que diz o documento ?Comissão para a promoção do Estudo da Matemática e das Ciências. Recomendações? nas ?Medidas de carácter específico? (pp. 9-10), documento, aliás, não divulgado na página do Ministério da Educação, o que também não deixa de ser estranho. As calculadoras são dos artefactos tecnológicos actuais mais banalizados. De facto, encontram-se tão vulgarizadas que se vendem calculadoras nas lojas de brinquedos, ao lado de carrinhos telecomandados, barbies e puzzles. Além disso, qualquer telemóvel possui calculadoras entre as opções que oferece aos utilizadores (e é do conhecimento público que Portugal é um dos países de maior implementação destes aparelhos que as crianças manipulam desde cedo) e o mesmo acontece com os computadores. Com isto quero dizer que o referido documento pretende evitar a utilização educativa de um utensílio que, praticamente, já todos usam no dia-dia-dia. Por outro lado, como mostra um estudo publicado pela Associação de Professores de Matemática, em 1998, as calculadoras são pouco utilizadas no 1º ciclo e, considerando que é pouco provável que os professores não sejam criteriosos nos materiais que utilizam nas suas salas de aula, os termos ? ?utilização indiscriminada? ? utilizados no referido documento, constróem uma afirmação de interpretação dúbia, uma vez que não é muito claro a que contextos se refere. Acrescente-se ainda que no Relatório Nacional das Provas de Aferição do Ensino Básico 4º ano-2000 as classificações mais altas dos alunos são, maioritariamente, nos itens relativos ao tema Números/Cálculo, pelo que, também não é claro porque é que o principal argumento para justificar esta medida seja que a calculadora ?limita a aquisição dos automatismos de cálculo?. Claro que nenhum professor, e muito menos de Matemática, quer ver, nem na escola nem na sociedade em geral, alguém recorrer à calculadora para, por exemplo, multiplicar um número por 10 ou por 100 ou para fazer adições do tipo 52 + 14. Mas este é precisamente um dos desafios que se coloca, isto é, sabendo como todos sabemos que as calculadoras são utensílios que se encontram à ?mão de semear?, como evitar o gesto compulsivo da sua utilização em casos de cálculos simples? Contudo, os desafios não acabam aqui. Outras situações que merecem atenção e que podem ser mais graves são aquelas que advêm do uso pouco criterioso da máquina de calcular. Por exemplo, utilizar a calculadora para multiplicar 21 por 25 e não questionar o que aparece no ecrã da máquina que pode ser 5025 se, em vez de 21, for digitado 201, por engano. Como afirma João Pedro da Ponte, num documento policopiado de Novembro de 2003, ?O que os alunos de Matemática precisam não é que os proíbam de usar máquinas de calcular (...) mas sim que os ensinem a usar adequadamente estes instrumentos. Se não forem ensinados na escola a lidar correctamente com estes poderosos meios, vão usá-los na mesma, fora da escola. Muito provavelmente vão usá-los de modo inadequado, porque não foram levados a reflectir sobre os problemas que podem surgir quando não se toma a devida atenção?. No meu entender, as recomendações provenientes de um documento tão anunciado como este teriam a obrigação de ir mais longe. Recorrer a uma recomendação proibitiva é uma solução deveras acanhada para um assunto com a actualidade e complexidade como o uso das tecnologias nas aulas de Matemática. Tanto mais que Portugal em matéria de ciência e tecnologia precisa mesmo de ser entusiasmado. Termino por agora e, em Março, os Textos Bissextos continuam com Elisa Costa.
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