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Cultura não é flor; é tronco

Trata-se no Brasil a cultura como a cereja do bolo da educação, ou a flor na árvore frondosa do saber. A prova disso é que o Ministério da Cultura está aí, com um ministro que é um charme, um luxo, mas que não tem dinheiro para tocar projeto algum.

Durante o Império, os assuntos ligados à educa­ção estavam a cargo do Ministério dos Negó­cios do Império, "que na República recebeu o nome de Ministério dos Negócios do Interior. A partir de 1891, passaram a ser tratados pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, que absorveu uma tímida Secretaria de Estado dos Negócios da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, criada pelo governo provisório de Deodoro da Fonseca. A Revolução de 30, afinal, criou o Ministério da Educação e Saúde Pública.
Afinal a educação era arrolada, explicitamente, entre os problemas da alçada do governo federal. Esta ligação com a saúde que de certa maneira faz sentido, uma vez que são os dois maiores problemas do país ainda hoje perdurou até 1953, no segundo governo Vargas, quando se criou um ministério para a saúde e outro para a educação e cultura.
"Dobradinha interessante que, no meu entender, não deveria ter sido desfeita. Porque não posso ver educação sem cultura ou vice-versa. A não ser que se considere educação apenas a transmissão de conhecimentos sedimentados. A grande experiência educacional feita no Rio de Janeiro, a dos Cieps abortada, como quase todas as boas iniciativas de um governo sucedido por outro de partido oponente tinha esta visão. Os animadores culturais faziam parte integrante do corpo docente. E a biblioteca era um destaque na arquitetura dos prédios especialmente projetados para abrigar crianças em tempo integral.
Trata-se no Brasil a cultura como a cereja do bolo da educação, ou a flor na árvore frondosa do saber. A prova disso é que o Ministério da Cultura está aí, com um ministro que é um charme, um luxo, mas que não tem dinheiro para tocar projeto algum. A grande luta do momento, iniciada no Rio de Janeiro por iniciativa do vereador Eliomar Coelho, é que este ministério tenha 1% do orçamento federal. Um por cento! E muita gente acha que é utopia, que nunca se conseguirá tanto. Tanto?
Mesmo assim, acho que era melhor quando estavam juntas, em um só ministério, a educação e a cultura. Como aceitar, por exemplo, uma escola sem professor de música? Foi com esta inquietação que o Conselho Estadual de Cultura, em 2001, começou a debater a questão da educação musical e sua obrigatoriedade nas escolas públicas. O maestro Edino Krieger, membro do colegiado, fez um ante-projeto que encaminhamos oficialmente à Secretaria de Educação. Nada aconteceu. No início deste ano, o texto, mais detalhado, foi entregue à Secretaria de Cultura. Não sei ainda os rumos que tomou. Não é um projeto ambicioso ou inexequível. A ideia é começar devagar, com um município escolhido para pólo. E, aos poucos, ir formando professores e estendendo a obrigação a novas áreas.
Não é nenhuma inovação. Villa-Lobos já queria transformar o Brasil em um grande coral, e quase conseguiu. Pelo menos, durante algum tempo, havia canto orfeônico nas escolas. Acabou. Como desapareceram os animadores culturais dos Cieps. É uma canseira este país, onde temos que recomeçar o tempo todo a lutar por coisas que já tivemos.
Apesar da canseira, sou patriota. Adoro este país absurdo e surdo aos reclamos do povão que continua torcendo por ele. Mas um dia quase tive vergonha de ser brasileira. Estava em Nova lorque; era tempo de Natal. Fui assistir a uma apresentação do Messias, de Handel. O maestro, antes de começar o espetáculo, pediu à platéia para se identificar por voz: quem aqui é tenor? quem é contralto? quem é soprano? E por aí foi. Quase todos na platéia levantaram os braços em algum momento. E quase todos cantaram, fazendo o coro, partitura na mão (haviam trazido de casa!), enquanto cantores profissionais entoavam as árias. Eu, muda. Foi deslumbrante. Um espetáculo assim, no Brasil, só dentro de um dos nossos poucos conservatórios de música. E olhe lá!


  
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Edição:

N.º 131
Ano 13, Fevereiro 2004

Autoria:

Ana Arruda Callado
Jornalista e Escritora, ex-Presidente do Conselho Estadual de Cultura
Ana Arruda Callado
Jornalista e Escritora, ex-Presidente do Conselho Estadual de Cultura

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