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Universidades e sociedade

As universidades de língua portuguesa  espalhadas por três continentes, quatro contando com Macau, estão sujeitas em cada um deles a condicionalismos exteriores violentamente diferentes.

As universidades brasileiras desenvolver-se-ão, certamente, no meio simultaneamente vasto e algo fechado dos horizontes sul-americanos. As  Universidades africanas irão descobrir  os seus horizontes africanos e estarão presas, possivelmente por um largo período, dos seus terríveis problemas de desenvolvimento. Nós, nas Universidades portuguesas, arriscamo-nos a ficar fechados em órbitas demasiado europeias.
O que é que nos une?  Sem dívida a língua com o que ela contem de cultura, tradição e sentir comum.
Nesta brevíssima intervenção pretendo falar de uma faceta fundamental das Universidades de língua portuguesa, que é a sua muito vincada tradição liberal e democrática.
É algo que vem de longe. José Bonifácio de Andrada e Silva, patriarca do Brasil, foi lente da Universidade de Coimbra, professor de Metalurgia, uma Ciência de ponta na época. Mas, além disso, organizou e comandou um batalhão académico quando da luta contra as invasões francesas.  O Imperador  D. Pedro I,  D. Pedro IV  para nós,  é o exemplo, possivelmente  único na História, de alguém que tendo dado o grito de independência de um país em que foi Imperador, abdicou, e foi depois lutar no país de origem, à frente dos chamados 6 mil bravos do Mindelo que desembarcaram na cidade do Porto onde estiveram cercados um ano, para depois, ao fim de uma longa luta, restabelecerem o liberalismo em Portugal.
Portugal, e muito em particular a Universidade de Coimbra, foram durante todo o século XIX centros vivos de ideias liberais e democráticas.  Os bacharéis brasileiros formados em Coimbra no século XIX não foram, pois, só lá  aprender umas vagas luzes jurídicas. Foram, sobretudo, conviver num dos mais vivos centro de ideias liberais da época. 
Não sou historiador e não vou alargar o tema, mas vou falar de algo de que fui testemunha e foi de imensa importância para mim. Refiro-me ao deslumbramento que tive quando, em 1963, emigrado político português, cheguei ao Recife e vi pela primeira vez um país de língua portuguesa a viver em democracia.
Era o Nordeste, onde o latifúndio estava a ser posto em causa, onde a Universidade se empenhava nas campanhas de alfabetização de Paulo Freire, com sindicatos livres, onde era tratado por cidadão António.  Era, sobretudo, o sonho de um grande Brasil a acreditar em si próprio, com uma imprensa em que tudo se discutia, em que os estudantes se empenhavam e ligavam o seu futuro a projectos como os da Electrobrás e da Minerobrás.
Do Recife, onde só passei ano e meio, guardo imagens que me acompanharão toda a vida.  São recordações que me impõem, também, uma obrigação que cumpro aqui, diante desta assembleia de universitários de língua  portuguesa, que é a de falar de dois jovens estudantes brasileiros,  jovens porque morreram jovens, que hoje seriam homens de 50 e poucos anos.
Fui há dois dias à Biblioteca Nacional fazer uma pesquisa para lhes encontrar os nomes e encontrei-os num velho jornal do Recife.  São eles : Ivan Rodrigues de Aguiar , de 23 anos, e Jonas José de Albuquerque Barros, de 17 anos, que morreram no dia 1 de Abril de 1964  nas ruas do Recife, acho que posso dizer pela liberdade do  Brasil.
Podia falar-vos , em primeira mão, do que sucedeu nesse dia no Recife, de aspectos até inéditos, mas seria falar do episódio. Podemos passar por cima disso.
Mas há recordações. Faz hoje exactamente  33 anos que acompanhei a um cemitério do Recife o enterro de um desses jovens.  Lembro-me, para além das imagens, do que disse o padre oficiante, professor da Universidade. Não me lembro das frases, lembro-me só de  que falou longamente dos anjos, o que me pareceu estranho e irreal. Levei  anos a entender. Se me recordo hoje, é porque foi um momento excepcional da vida de um país. Falar dos anjos só é possível num país com uma antiga cultura. É falar de algo que está fora das regras e do tempo dos homens, de algo que, sendo um começo, continua para sempre. Acho que foi por isso que aquele professor da Universidade do Recife falou nos anjos, naquele cemitério em que ia a enterrar um dos primeiros mortos de uma luta que ia ser longa e dura.

Nota:
Este texto é a 1ª parte de uma comunicação apresentada em 3 de Abril de 1997, no Rio de Janeiro, no VII Encontro da Associação das Universidades de Língua Portuguesa. Publica-se por se crer manter a actualidade e pertinência. A 2ª parte será publicada no próximo número.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 131
Ano 13, Fevereiro 2004

Autoria:

António Brotas
Professor Jubilado do Instituto Superior Técnico
António Brotas
Professor Jubilado do Instituto Superior Técnico

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