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A Escola, o Laicismo e a ?Diferença?

A decisão do governo francês de reafirmar o laicismo do sistema educativo surge, desde logo, como discutível, dado que a escola francesa, (?) só formalmente pode ser considerada como laica.

Tomamos conhecimento através da imagem e das palavras do presidente Jacques Chirac, nas televisões, que o governo francês deliberou não permitir que a religiosidade se manifeste no sistema escolar. Tal decisão decorreu de um debate que se tem vindo a desenvolver nos últimos anos a propósito da utilização ou não de sinais de marcas culturais, no caso o véu islâmico, nos espaços públicos franceses.
O estado francês possui, como se sabe, uma forte tradição republicana que pressupõe que as crianças, cidadãos a construir, são, para todos os efeitos, ?filhos e filhas da República?. A dinâmica política que parece presidir a esta perspectiva é a de que o estado promove e constrói, através da acção socializadora das suas instituições, uma espécie de ?etnia nacional?. Neste sentido, para se ser cidadão em pleno da República surge como obrigatória a aquisição dessa marca étnica, sendo a escola o dispositivo político privilegiado para essa mesma aquisição.
Como chamava a atenção o sociólogo da educação Basil Bernstein, a escola não existe independentemente da sociedade. De facto, ela é permeada pela cultura dos estados-nação e, por sua vez, infunde-se nessa mesma cultura. Assim, a organização do ano escolar, por exemplo, nos seus ritmos anuais, é pontuada por interrupções que são profundamente enraizadas na cultura nacional, incluindo evidentemente aí as marcas religiosas: a assunção da semana de cinco dias tendo como referência o ?dia sagrado? de Domingo, as férias do Natal, do Carnaval, da Páscoa, etc. Esta presença da cultura nacional e das suas normas não se limita aos aspectos religiosos, as marcas culturais de teor mais profano são também visíveis: a maneira considerada apropriada de ?vestir para ir à escola?, as opções de vestuário e o aspecto físico dos próprios professores, para dar apenas estes exemplos. Assim, torna-se claro que a separação jacobina entre o particular cultural e o universal da cidadania é, no fundo, marcada pela ?etnicidade nacional? que lhe está na origem, isto é, a escola republicana francesa, sendo republicana é também, indiscutivelmente, francesa, quer dizer, de fundo judaico-cristão.
Desta forma, a decisão do governo francês de reafirmar o laicismo do sistema educativo surge, desde logo, como discutível, dado que a escola francesa, como argumentámos, só formalmente pode ser considerada como laica. Por outro lado, este tipo de afirmação de republicanismo não chega para velar o facto de o estado-nação ser originalmente uma construção híbrida e, sobretudo, hoje ser uma realidade de tal maneira compósita que aquilo que significa ser ?francês?, ser ?português?, ser ?alemão?, etc., tem de ser reexaminado. Mais, no caso francês a tradição jacobina e republicana parece, a julgar pelas palavras de Jacques Chirac, dizer que para se ser um cidadão francês na máxima plenitude não basta ter nacionalidade francesa, sendo preciso ? e talvez isso seja o mais importante ? ter adquirido o que acima chamámos a ?etnicidade nacional?.
Não é possível negar que actualmente a escola francesa é constituída por um público muito heterogéneo. De acordo com o nosso argumento, é esta a questão de fundo ? a relação com a diferença ? e não a questão do laicismo da escola francesa. Por outras palavras, o governo francês parece assumir que o laicismo escolar não é mais do que a promoção da escola ?francesa? nos seus moldes tradicionais. Proclamar, a partir do poder central, que as ?diferenças? não têm lugar na escola republicana francesa, é a mesma coisa que declarar que a sociedade francesa não tem, por exemplo, uma parte importante da população constituída por muçulmanas.
Em suma, as palavras de Chirac surpreenderam-nos porque parecem veicular uma concepção de construção nacional fundada num modelo de sociedade marcadamente etnocêntrico. O nosso receio é que, talvez, este mesmo modelo seja extrapolado para o nível da construção europeia, remetendo para a construção de uma meganação e da respectiva ?etnicidade?. Não se trata de defender que os ?franceses? não devem ter orgulho nas suas ?raízes? culturais, o que se trata é de abrir a possibilidade a que todos os cidadãos nacionais possam exercer o direito de exprimir igual orgulho nas suas. Não se trata também de querer pôr em causa o papel dos estados-nação na construção da Europa, mas de não reduzir essa construção a uma remake da construção do estado-nação.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 131
Ano 13, Fevereiro 2004

Autoria:

António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
António M. Magalhães
Univ. do Porto
Stephen R. Stoer
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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