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O Elefante ou o Quebra-nozes para as crianças?

Para nossa neta Maira, filha de Cristan van Emden e Paula (née Iturra)

Foi comentado no nosso jornal do mês de Dezembro, que Natal era quando o marketing quiser. Comentário que me leva a pensar a relação dos adultos e das crianças. Essa relação, hoje, de distância e, antigamente, de larga intimidade, ambas com muito imaginário e certa afectividade. Imaginário, como é natural, que varia no tempo e no espaço. Como Pyotr Ilyich Thcaikosky e Gus van Sant. Como a água do óleo. Qual, a verdadeira? Qual, a conveniente? Qual, a da História? Não é o acaso que me leva a pensar no Elefante e no Quebra-nozes.

O Elefante, de Gus van Sant, é o filme que relata, em 2003, o que aconteceu na Escola Secundária de Columbine de Littleton, Colorado, USA, em 1999. Em Abril de 1999, duas crianças púberes massacraram colegas, docentes, administrativos e amigos. Uma escola assassinada por sentirem que ninguém tinha paciência, carinho ou atenção por eles, e que a sua inteligência e talento passavam despercebidos. De facto, até o Für Elise de Beethoven ou Sonata ao Luar, descrevem os sentimentos emotivos dos meninos desprezados. Por quem? Acabado o filme, ficamos a saber, ao pesquisar os factos e ao reparar no processo dentro do qual decorre a nossa vida actual: a solidão, a falta de família, mães empresarias, pais no escritório, sem beijo, abraço, carícia ou sorriso, esses pequenos nadinhas de apoio para seres que estão a começar a vida. Não tendo ainda capitalizado analise, entendimento, simpatia, dos seus actos e factos, como referem Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron em 1970, no seu La Reproduction, quando falam que a violência simbólica está ligada ao sistema de ensino ? distante da acção pedagógica ? disciplina com castigo corporal, sistema de ensino baseado na memorização das ideias sem debate, informes negativos aos adultos das crianças, e outras ideias desenvolvidas por eles em diferentes textos, especialmente nos majestosos Le pouvoir symbolique de 1989, ao referir Bourdieu, que la mort sasit le vif, ou a morte do outro dá ? me a vida ? como parecem ter pensado os adolescentes ao reivindicarem o seu direito à vida amável, justa e reconhecimento dos seus afazeres. Proferem uma frase dura e bestial ao Director que costumava bater-lhes, no segundo prévio à balada de balas que canta a extinção de um ente anti pedagógico: ?Nunca pensaste que eu também pensava, sua besta...Diz perdão, Diz perdão..!?..., mas a absolvição acaba por ser o fuzilamento sobre o piso do bom feitor de crianças assassinas; bem como no La misère du monde de 1993, ao falar de famílias deslocadas do seu sítio natural, terra e lar. Exactamente, esse Elefante das crianças que agarram a vida na medida que matam mais de duzentas pessoas para compensar a falta de sítio próprio, definido pela frase do inicio deste texto: o marketing retira seres humanos dos seus descendentes, do cuidado e atenção aos seus estudos, namoros, planos de vida, gerindo auto estima enganada, Beethovens que substituem emotividade mal nascida, abortada ou nunca desenvolvida. Esse pesado animal de trompa cumprida, acaba por ser a sociedade que cria entidades para o mercado, que saibam calcular e encurralar o inimigo ? inimigo definido, à la Freud, pelo desbravamento de seres para amar, por seres para odiar e serem mortos para esse agarrar a vida. Deslocação não querida, mas entendida por causas distantes de sentimentos necessariamente entremeados com uma certa racionalidade que os adultos saberiam ensinar... se o mercado o permitisse. Elefante criado pelos invasores do Vietname, salvadores do Iraque, intervenientes em processos democratas, como o do Salvador do Chile. Toma da vida, uma real toma da Bastilha que pretende a liberdade, igualdade e fraternidade, direitos definidos mas nunca atingidos. Direitos, fundamentais na idade adolescente que, ao não serem fornecidos, passam para uma sublimação ritual na Missa das balas lançadas em nome da justiça e do bem-estar dos adolescentes em questão. Fuzilar para tomar a vida do outro e assim ficar no justo peso e medida da interacção social. Interacção definida pela acumulação do lucro e procura de mais valia na empresa da vida, como tem sido definido pela nossa História, ao longo do tempo, a partir da existência de mercadorias entre países ocidentais e orientais, mercadoria que desnorteia o comportamento. Donde, Quebra-nozes. Pytor Illich apresenta-nos uma Clara que acolhe no seu regaço o seu boneco partido na rixa de crianças na noite de Natal. Essa noite apoiada pelo avô que dança, a mãe que dita as horas de ir para cama, o pai que apoia a disciplina e assim terem uma surpresa para os pequenos no dia seguinte de manhã. Pequenos que no referido bailado, manipulam o seu ainda despovoado imaginário, dentro dos limites delineados pela família. Um Quebra-nozes que, na fantasia da pequena, dança, namora, apresenta um bosque e um castelo no qual se manifesta como o Príncipe que realmente era. Quebra-nozes que o seu irmão, na sua raiva de já não ser capaz de brincar com os presentes de Natal, parte e desfaz, como se fosse um presságio do Elefante de Columbine, Van Sant e Tchaikowsky pertencem a dois mundo diferentes: os da magia da criação musical que ilude a partir de factos que seriam banais se não fossem importantes para as crianças, o músico; ou da magia da recriação do real na base da irrealidade da imagem, o cineasta. No entanto, os dois a analisarem a importância do apoio do adulto que entende ? ou não ?, os pequenos. Os que entendem ganham uma princesa; os que não, ganham uma depressão e, muitos, um luto inesperado. Van Sant sabe qual a pedagogia necessária para termos cidadãos animados e emotivos que sabem combinar coração com razão. Piotr, faz-nos dançar com o chá da China, o chocolate da Espanha, os doces da Rússia e a infinita Valsa das Flores, no minuto que toda a família festeja a recuperação do Quebra-nozes, a sua conversão em Príncipe e o seu amor declarado à pequena que, já mulher, o soube restaurar, em menina, no seu colo. A História arquiva Columbine, mas aprende os factos que o capital nos causa; assim como, arquiva em salas de dança e em discos, o ar doce e amoroso da Valsa das Flores, Epílogo desejado por todo o educador. Uma Apoteose a milhas de distância dos educadores ? tantos! -, que criam aborrecidos e mal estimados Columbines. A História aborrece o Elefante e sonha com o Quebra-nozes, mas vive na singular batalha do animal de trompa cumprida, já faz anos...e os que ainda faltam. Para as crianças não pode haver Quebra-nozes, excepto se queremos levantar a Apoteose de saber agarrar a vida para a continuar dentro do plano dos direitos humanos que, até onde entendo, os nossos dois artistas criam e Pierre Bourdieu analisa de forma sabida. É com eles que aprendemos a crescer e a não apenas a viver dentro do lucro e mais valia, mas sim, dentro de uma raciocinada fantasia. Elefantes e Quebra-nozes a par e passo, no processo da vida, para os pedagogos aprenderem com todos estes artísticos factos. Haja ouvidos para entendermos os processos educativos e vivermos calmos e serenos, no amor e delicadeza de gerações a compartilhar a mesma cronologia.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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