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A nova lei do ensino especial põe em risco a escola inclusiva

a PÁGINA entrevista Luísa Panaças, Professora Adjunta na Escola Superior de Educação de Portalegre (ESEP)

Numa altura em que se prepara uma nova legislação para regulamentar os apoios educativos especiais em Portugal, A PÁGINA foi procurar saber como se caracteriza o modelo ainda em vigor e que implicações podem decorrer do novo enquadramento legal. Foi nesse intuito que decidimos viajar até Portalegre e entrevistar Luísa Panaças, Professora Adjunta na Escola Superior de Educação de Portalegre (ESEP) e vice-presidente do Conselho Directivo daquela escola.
Psicóloga de formação, é actualmente docente na formação inicial de Educadores e Professores do Ensino Básico, formadora especialista na área da Psicologia da Educação e na área de Necessidades Educativas Especiais na Formação Contínua de Educadores e Professores de vários graus de Ensino. A sua área de investigação incide sobre Necessidades Educativas Especiais e Escola Inclusiva.

Que comentário faz ao actual modelo de apoios educativos em Portugal?

No domínio dos apoios educativos em Portugal há já quem esteja a trabalhar num modelo próprio do século XXI, outros que procuram ainda um caminho e outros ainda que, infelizmente, trabalham mal. As experiências de inclusão de alunos com NEE nas escolas que tive oportunidade de conhecer leva-me a concluir que a legislação não é o principal factor para o sucesso dos apoios educativos, mas antes a dinâmica imprimida pelas próprias escolas ou agrupamento de escolas.
Em muitos casos existem possibilidades concretas de organização e de trabalho em conjunto que, aproveitando os recursos pedagógicos e humanos de uma forma mais criativa, podem responder melhor às necessidades dos alunos. E há escolas que fazem isso.
O facto de umas conseguirem e outras não estará relacionado, na minha opinião, com a falta de definição dos diferentes papéis ligados aos apoios educativos. A legislação que define o técnico de apoio, por exemplo, é excelente, mas não há pessoas que consigam corresponder a este papel porque acumula demasiadas funções ? sobretudo quando sabemos que a formação não acompanha estas necessidades.

O Decreto-Lei 6/2001, de 18 de Janeiro, relativo ao novo modelo de gestão curricular para o ensino básico, vem definir pela primeira vez na legislação portuguesa o conceito de necessidades educativas especiais de carácter permanente/prolongado. Que repercussões pode trazer esta alteração conceptual no actual modelo dos apoios educativos?

O conceito de necessidades educativas especiais (NEE) é um termo abrangente que implica não apenas os alunos com deficiências profundas mas todos aqueles que, ao longo da vida, possam vir a ter necessidade de apoio. O conceito de NEE de carácter prolongado poderia ser teoricamente interessante para os apoios educativos se fosse aplicado aos problemas que não podem ser resolvidos no imediato.
Na minha opinião, o Ministério da Educação está a tentar que as deficiências de carácter prolongado se passem a referir exclusivamente às necessidades de carácter profundo, implicando desta forma que as crianças com deficiências ligeiras - como a dislexia, que apesar de não ser considerada uma deficiência profunda vai afectar a criança ao longo da vida - possam vir a ficar privadas dos apoios educativos por não encaixarem naquele conceito. Tudo dependerá da forma como os apoios educativos estão organizados em cada escola, mas uma grande franja de crianças que não se incluem nesta categoria corre o risco de deixar de ter apoio.

De acordo com o Observatório dos Apoios Educativos, em 2001/2002 a percentagem de crianças com necessidades educativas de carácter prolongado atingia mais de metade (54%) do número de alunos com NEE, 48% frequentando o 1º ciclo do ensino básico. Isto significa que, de acordo com a sua análise, cerca de metade dos alunos ficará sem apoio. Qual é o seu comentário?

Se houvesse uma escola perfeita, onde os professores soubessem lidar com a diversidade, provavelmente concordaria que os apoios específicos e sujeitos a um apoio individual ficassem reservados para as NEE de carácter prolongado. O problema é que a larga maioria dos professores do ensino regular não está ainda preparado para encarar e saber trabalhar a diferença. E isto só será possível com uma evolução de atitudes ? que era desejável que já tivesse ocorrido mas não ocorreu.
Na formação inicial os professores são orientados para trabalhar com crianças ?normais?, em função de um modelo que, por mais que se queira, não pode ser padronizado. Apesar de querermos uma escola aberta à diversidade, temos ainda professores a ser formados para lidar com alunos medianos, com quem se pode trabalhar ao mesmo ritmo, e isso dificulta a percepção dos professores para a necessidade de adequar o currículo às necessidades dos diferentes grupos de alunos. Se os professores estivessem preparados para lidar com as deficiências mais ligeiras, através de um apoio dado não ao aluno mas a ele próprio, provavelmente concordaria com a intenção do ME.

Em 2001/2002 existia perto de uma centena de Equipas de Coordenação dos Apoios Educativos. Esta oferta responde às necessidades?

Considero que o problema não está no número de equipas mas no facto de estas não estarem a trabalhar de uma forma organizada. Faria mais sentido se esse apoio fosse dirigido ao professor e à escola em vez de ser dirigido individualmente ao aluno. Portugal comprometeu-se, em 1994, na célebre encontro de Salamanca (ver Dossier nas páginas 35, 36 e 37), a criar condições para o desenvolvimento de uma escola inclusiva, e ela implica que haja apoio para as crianças deficientes ou com NEE na sala de aula e não fora dela, através do apoio ao currículo e não individualmente ao aluno.
A diversidade de alunos presentes numa sala de aula implica que estes não tenham todos as mesmas capacidades nem os mesmo ritmos de aprendizagem, e é necessário que eles possam trabalhar de acordo com as suas capacidades. Inclusivamente a nível cultural e linguístico, se pensarmos nos muitos alunos recém-chegados de países estrangeiros. Também eles têm necessidade de NEE.

De acordo com o mesmo relatório, se em 2000/2001 o número de equipas de apoio especial era da ordem da centena, esse número diminuiu significativamente em relação ao ano anterior, calculado em 186, o que representa uma diminuição próxima dos 50%. Como se entende esta redução e que consequências pode ter trazido?

Só consigo entender essa redução numa perspectiva de poupança económica. Um dos problemas que atinge os apoios educativos é o facto de os cortes financeiros inviabilizarem projectos que, após um percurso e um trabalho consistentes ? porque trabalhar em equipa é complicado e as pessoas precisam de um tempo para se apropriarem das competências ? acabam por perder-se.
Com uma quebra na ordem da que referiu é natural que as pessoas sintam que o trabalho que andaram a fazer afinal não serviu para nada, abandonem esta área e acabem a trabalhar isoladamente numa sala de aula, perdendo-se uma série de experiências e de competências que podiam ser utilizadas em benefício dos alunos.
No entanto, se as escolas do ensino regular tiverem bons recursos e as equipas de apoio educativo estiverem bem organizadas, bastaria terem um professor de apoio mais vocacionado para a consultoria do currículo do que propriamente ao apoio directo à sala de aula para conseguir dar uma resposta adequada. E hoje temos professores de apoio em Portugal com bons currículos e competências.

Falta de articulação prejudica oferta dos apoios educativos

De que factores depende, na sua opinião, a adequação da resposta dos professores de apoio educativo nesta área?

A adequação da resposta depende não só da organização a que já me referi mas também de factores como a compreensão que o professor de apoio tem acerca do seu papel, a forma como colabora com os outros professores e a da sua integração nas escolas. Depois, as próprias equipas directivas das escolas têm elas próprias um papel fundamental na dinamização e articulação dos recursos materiais e humanos.
Sei, por exemplo, que existe actualmente um psicólogo por cada agrupamento de escola; obviamente que isso não chega, porque ele tem de atender a uma diversidade de tarefas (atender a problemas de comportamento e delinquência, e mesmo a casos de saúde mental, ajudar na orientação profissional dos alunos, trabalhar nos currículos dos projectos de escola?) que, naturalmente, acabam por limitar a qualidade da sua prestação.
Apesar de tudo, posso afirmar que temos uma boa oferta relativamente àquela que é prestada em muitos países europeus. Na maioria dos casos, o nosso problema é o facto de essa oferta não estar suficientemente organizada e articulada ? sem esquecer o facto de algumas opções de investimento estarem, nesta fase, sujeitas a imperativos de ordem económica.
 
De que forma descreveria as experiências no resto da Europa?

Partindo do conhecimento de trabalhos a que tenho tido acesso, em alguns dos quais tive inclusivamente oportunidade de participar, nomeadamente em países anglo-saxónicos, Portugal não tem das piores ofertas em termos de NEE - esta é a minha opinião, algumas pessoas poderão discordar dela.
Lá fora, nomeadamente na Bélgica e na Grã-Bretanha, que são os casos que conheço mais de perto, as condições dentro das salas de aula são melhores, mas a cultura de integração está menos presente do que no nosso país. Quando estive na Grã-Bretanha, por exemplo, visitei uma escola onde havia apenas um aluno deficiente e, mesmo assim, ele estava numa sala separada, o que nunca aconteceria em Portugal.

Ou seja, está a tentar dizer-me que em termos da filosofia de integração estamos avançados mas falta-nos melhorar a organização do sistema??

Precisamente. Apesar de reconhecer que já podíamos estar mais avançados, não consigo ser pessimista ao ponto de assumir uma posição miserabilista quando comparo a nossa situação com os outros países da Europa. Os outros países podem ter melhores meios mas os portugueses têm uma filosofia de integração mais positiva. A nossa tradição cultural não remete as pessoas de terceira idade para os lares e as crianças deficientes para escolas de ensino especial, não temos essa atitude segregadora.

Como caracterizaria, de uma forma geral, a formação dos professores de apoio educativo em Portugal?

Nessa área tem havido algumas alterações de fundo. Há alguns anos atrás, quando os professores de apoio educativo eram chamados professores do ensino especial, a formação era de carácter especializado - na surdez ou na cegueira, por exemplo. Actualmente defende-se que os professores devem ter uma formação de carácter mais generalista, orientada para uma filosofia de inclusão e desempenhando as suas tarefas fora do tradicional modelo de apoio.
A formação que ministramos aqui na Escola Superior de Educação de Portalegre (ESEP), por exemplo, é vocacionada para as competências de trabalho em equipa em contexto de agrupamento, de forma a adaptar o professor para todo o tipo de situações com que terá de deparar, incluindo na sua formação, entre outras, áreas especializadas como ciências mentais ou ciências motoras.

No novo diploma prevê-se que as turmas com alunos com NEE não excedam os vinte elementos e não incluam mais do que dois alunos com estas características, exceptuando casos devidamente fundamentados. Qual é a situação actual?

Essa proposta é apenas alterada em termos de nomenclatura porque é um procedimento que já vem da anterior legislação, que, segundo sei, raramente era cumprido. Isto, porque não há cuidado por parte dos órgãos de gestão das escolas em gerir essas situações e inverter a tendência de remeter os casos de NEE para os professores recém-chegados.
E isso é grave, não por serem pessoas novas - estão cheios de energia e fazem maravilhas ? mas porque se torna difícil ter um trabalho equilibrado e produtivo. Muitas das situações de stress e burnout nos professores advêm precisamente da incapacidade de lidar com situações tão diversificadas ao mesmo tempo. Admito que em algumas escolas seja difícil gerir estas situações devido ao número de salas e de alunos, mas nem sempre se organiza de uma forma séria a distribuição de alunos.

Certificação ou segregação?

Na proposta do ME aparece no capítulo da certificação a seguinte referência: ?No diploma serão anexadas obrigatoriamente as alterações escolares específicas que foram aplicadas ao longo da sua escolaridade?. Será que não se estará perante uma forma de discriminação?

O currículo alternativo para alunos com NEE pode ser concretizado através de um programa que pouco terá a ver com o currículo normal - como aprender a vestir e a despir-se, aprender a andar na rua, a apanhar transportes públicos, aprender a comer - e que não cumpre os objectivos habitualmente estabelecidos para a escolaridade obrigatória.
Mas se incluímos estas crianças na escola e se pretendemos que nela cada aluno faça o seu percurso de acordo com as suas próprias capacidades, fazendo com que os colegas percebam que aquelas competências são apropriadas para aquele aluno e que ele não é menos por causa disso, então ele deveria acabar a escolaridade básica obrigatória e obter o respectivo diploma sem nenhuma espécie de discriminação.
Por outro lado, levanta-se a questão das competências específicas de leitura e de escrita, para as quais são exigidas, mais tarde ou mais cedo, habilitações equivalentes ao 9º ano de escolaridade. É uma questão delicada sobre a qual admito ainda não ter reflectido a fundo e sobre a qual ignoro de que forma os restantes países europeus foram lidando.

Preparar para a diversidade

De que forma está organizada a formação de professores na Escola Superior de Educação de Portalegre (ESEP) de forma a preparar os jovens professores para as situações de NEE?

Nos cursos de formação inicial de professores da ESEP existe, desde há vários anos, uma disciplina dirigida para as necessidades educativas especiais, onde, entre outras competências, se procura desenvolver nos futuros professores atitudes positivas em relação à diferença e ao que representa a escola inclusiva, munindo-os de ferramentas de diagnóstico, observação e gestão de um grupo de crianças com NEE e de que forma devem utilizá-las no seu trabalho pedagógico específico para lidar, na prática, com a diversidade de situações com que se irão confrontar na sala de aula.
A principal dificuldade está em transpor as aprendizagens desta disciplina para as restantes disciplinas do curso, já que habitualmente os professores remetem essa tarefa em exclusivo para o ensino especial. Actualmente as coisas estão a funcionar relativamente melhor do que acontecia há uns anos atrás, já que, com o aparecimento dos complementos de educação especial para professores, houve necessidade de introduzir nos cursos de educação especial cadeiras de matemática, ciências e língua portuguesa, e os professores, sabendo que vão leccionar estas disciplinas, passaram eles próprios a apropriar-se desta linguagem. Mas não foi fácil, porque eram realidades que estavam longe do quotidiano dos professores do ensino superior.

A constante mudança de legislação também não ajudará a definir um programa de formação coerente?

Sim, de facto a legislação muda frequentemente, muitas vezes não se sabe ao sabor de quê, não dando tempo às pessoas para se adaptarem à realidade anterior. Durante algum tempo andamos a ensinar aos professores da formação inicial e da contínua o que era a escola inclusiva, a ajudá-los a mudar de atitude em relação às categorizações das deficiências e a potenciar e articular os recursos, mas de repente a legislação volta a dizer que tem de haver um atestado médico e a retirar a responsabilidade aos professores de serem eles, enquanto pedagogos, a definir o tipo de apoio a prestar.
Mesmo quando há boas intenções por parte do legislador, seguimos uma determinada orientação que acaba por mudar mais tarde. A partir de 1994, com a declaração de Salamanca, parecia que não existiam dúvidas quanto ao caminho a seguir, mas agora surge a incógnita.

Sente-se satisfeita com o trabalho realizado?

Apesar de se terem registado melhorias nos últimos anos ainda não me sinto totalmente satisfeita, e considero que, mesmo da parte de quem está responsável pela formação, é necessário aperfeiçoá-la e tentarmos compreender melhor a realidade de trabalho dos nossos colegas do ensino básico. Só ficarei satisfeita no dia em que deixe de haver necessidade de existir uma cadeira com estas características nos cursos de formação de professores e que as suas matérias passem a ser abordadas directamente nos grupos disciplinares.
E há uma mensagem que os alunos da formação inicial devem ter bem presente: o bom ensino é bom para todos, não é apenas para os alunos bons e medianos. Quando falamos de ensino especial e de apoios educativos, os professores de apoio educativo não têm nenhum método miraculoso na manga para resolver os problemas. O "milagre" baseia-se em bons métodos de ensino e numa atitude positiva face aos conhecimentos dos alunos.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Luísa Panaças
Professora Adjunta na Escola Superior de Educação de Portalegre (ESEP)
Luísa Panaças
Professora Adjunta na Escola Superior de Educação de Portalegre (ESEP)

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