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A dualidade natureza-máquina

PROCUREMOS O RELACIONAMENTO ENTRE CRIAÇÃO TÉCNICA E ARTÍSTICA. UM MESMO CONCEITO SITUA-SE NO ÂMAGO DE CADA UMA E NA FRONTEIRA ENTRE AMBAS: O DESENHO OU PROJECTO. ESSE RELACIONAMENTO REMONTA, PELO MENOS, AO RENASCIMENTO, QUANDO ENGENHEIROS-ARTISTAS DESENHAVAM UM INSTRUMENTO OU UMA MÁQUINA OU UM EDIFÍCIO, COMBINANDO A EICÁCIA DA DESCRIÇÃO CONSTRUTIVA COM A HARMONIA DA FORMA OU DA FUNÇÃO. FIGURAVAM E CONSTRUÍAM MÁQUINAS COMO SE RETRATASSEM PERSONAGENS OU FIGURASSEM A NATUREZA.

Para esses engenheiros-artistas [do Renascimento] o processo criativo centrava-se na imitação da natureza, a fonte da sua inspiração. A imitação prevalecia sobre a invenção. Essa atitude partia da convicção de que a natureza teria em si o conhecimento e a perfeição. Mas essa atitude suscitava também a observação e a experimentação activas que, através da aquisição do conhecimento dos princípios de funcionamento da natureza, forneceria ao homem a possibilidade de a imitar melhor. Essa era então a relação filosófica entre a razão humana e o mundo natural, essa a motivação desses homens.
O método científico moderno foi uma evolução revolucionária emergente do Renascimento. A observação da natureza ultrapassou o limiar da sua contemplação crítica dando lugar à observação exploratória, com recurso à utilização e depois à invenção de instrumentos, e à quantificação das observações feitas. E as teorias foram matematicamente formuladas e utilizadas como premissas para a dedução de conclusões factuais, conclusões que serviam tanto como teste às teorias como ofereciam aplicações práticas destas.
A descoberta científica é esquematicamente um processo de observação-hipóteses-verificação. Segundo Karl Popper, o passo essencial da prova científica é o teste à luz de um ?princípio da falsificação?. Para que a hipótese seja válida, ela deverá ser enunciada de modo que seja possível testá-la rigorosamente e evidenciar a sua potencial falsidade. É um processo de construção de um ?edifício? de ?verdade condicional?.
A engenharia é um processo evolutivo de auto-correcção semelhante ao processo científico, mas mais apropriadamente descrito pela sequência observação-projecto-ensaio. Ou seja, a engenharia pode ser tomada como uma aplicação do método científico mas em que o projecto substitui a hipótese, e o princípio da falsificação é assumido pelo ensaio de um protótipo descrito pelo projecto. Este processo de alteração, ajustamento e selecção, parece análogo ao processo de evolução biológica em que podemos imaginar a natureza desenvolver novas espécies, a testá-las e a seleccioná-las, em função do melhor desempenho no mundo real. 
Desta convergência e sobreposição de perspectivas se infere que os fundamentos da criação tecnica, em engenharia, são coincidentes com os da descoberta científica, e que conjuntamente reflectem a própria evolução dialéctica dos fenómenos naturais. Da Vince, Bacon, Galileo, Pascal,  Newton, Faraday, Darwin, são apenas alguns dos expoentes desse progresso epistemológico em que invenção e descoberta dificilmente ou só por intenção metodológica se podem destrinçar. 
Os avanços históricos nas ciências empíricas encontram-se associados aos progressos acumulados em aperfeiçoamentos técnicos, que suportam as técnicas instrumentais de observação e de processamento de informação. E vice-versa, a ciência fundamenta ou inspira novas realizações técnicas. Ciência e tecnologia nem sempre são diferenciáveis e muitas vezes estão evidentemente interdependentes para os seus respectivos avanços. Esta constatação implica o reconhecimento da dualidade dessas duas categorias de conhecimento e releva a importâncias filosófica da tecnologia.
A metáfora da natureza enquanto máquina cativou a atenção de cientistas durante séculos até à actualidade. As máquinas do século XVII tinham a capacidade de transmitir e transformar movimentos desencadeados por uma força motriz. Os filósofos mecanicistas procuraram identificar na natureza mecanismos equivalentes de transmissão e de transformação desencadeados por forças desconhecidas. O mundo seria uma máquina cósmica, criada e actuada por um criador, na qual pequenas máquinas actuam embebidas em outras sucessivamente maiores. A concepção da natureza como um mecanismo iterativo e generativo perdura ainda hoje.
O progresso impetuoso da bioquímica, em particular a descoberta revolucionária do ADN, trouxe renovada actualidade a uma leitura mecanicista do mundo. A emergência e os avanços promissores da nano-ciência e da nano-tecnologia no final do século XX, não só renovaram o sonho da interpretação mecânica da realidade como também permitem a invenção de nano-estruturas que são prodigiosas máquinas microscópicas. As nano-ciências oferecem nova pistas sobre velhos problemas como a própria emergência da vida e o fabrico de materiais com propriedades ideais.
Na realidade confrontamos, de novo, o desafio da identidade da máquina, a distinção, real ou ilusória, entre a máquina e a natureza. Ao longo dos tempos, diferentes linhas de demarcação foram vencidas, o progresso da ciência ou da técnica, por si mesmas ou apoiadas uma na outra, fizeram essa linha de demarcação oscilar mas avançar. A compreensão do mundo e a realização técnica da máquina surgem indissoluvelmente inter-relacionadas ao longo da história humana.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora
Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora

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