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"Não há reforma que aguente sem uma forte aposta na formação dos professores"

No face a face deste mês conversámos com Daisi Leitão, professora de Físico-Químicas na Escola Secundária Carolina Michaelis, no Porto, com quem falamos sobre algumas das questões que actualmente mais preocupam os docentes destas duas áreas disciplinares: inexistência de formação contínua que permita a actualização dos saberes, pouca aposta no trabalho experimental e falta de segurança nos laboratórios escolares.

Parece haver uma certa contradição entre a decisão do novo governo em apostar na área das ciências e o anúncio de medidas como a extinção do Programa Ciência Viva ou a redução do Orçamento de Estado para a Educação. Qual é o seu comentário?  

Sim, particularmente quando a ministra do Ensino Superior diz que a ciência deve partir de um ensino experimental, mas o ministro da educação, através da nova revisão curricular, torna opcional o ensino das ciências experimentais. E mais: acaba com todas as disciplinas técnicas.  No fundo penso que existe uma tentativa de "fabricar" o sucesso escolar à custa de uma menor exigência na prestação dos alunos. Como é possível que as disciplinas científicas sejam opcionais?

Por outro lado, o novo programa de Química exige mais horas do que aquelas que estão previstas no plano curricular dos alunos do ensino secundário. Como estão os professores a lidar com essa situação?

Neste momento existe uma grande confusão porque estão em vigor dois programas. No programa mais actual de Física e Química os alunos têm previstos mais 90 minutos de aulas em relação ao actual plano curricular. Isso faz com que os professores de Físico-Químicas tenham de dar o novo programa sem serem tempo para o fazer. A solução encontrada pelo ministério foi obrigar os alunos a frequentar a disciplina opcional de Técnicas Laboratoriais de Química (TLQ) para colmatar essa falta de tempo.
É uma autêntica burla, porque os alunos são obrigados a frequentar uma disciplina que é facultativa apenas para satisfazer as pretensões dos livreiros ? já que, de contrário, o ministério da Educação teria de os indemnizar. Quem está a pagar a factura são os professores e os alunos. A situação chega ao ridículo de os alunos de Desporto, que tinham previstas no programa seis horas de Técnica de Desporto, terem de suprimir três delas para terem aulas suplementares de Físico-Químicas.
Ao mesmo tempo que me dizem que este esquema irá ajudar os professores a cumprir integralmente o programa de Química, quem dá a nota daquelas três horas de TLQ é o professor dessa disciplina, não é o professor de Físico-Químicas.

A Sociedade Portuguesa de Física e Química (SPFQ) elaborou, em 2001, um Livro Branco que pretendia identificar os principais problemas com que se debate o ensino destas disciplinas, onde se referia, nomeadamente, que existe uma insuficiente preparação dos professores para o ensino experimental. Confirma esta ideia?

Em primeiro lugar, a maioria das escolas, sobretudo a nível do ensino básico, não está convenientemente equipada para aulas laboratoriais. Isto, porque o ensino básico está a ser ministrado em escolas C+S, que por serem escolas preparadas para o 5º e 6º anos, não estão apetrechadas de laboratórios. Algumas escolas chegam mesmo ao ponto de terem equipamento encaixotado porque não dispõem de instalações para o utilizar. Isso faz com que a maioria dos alunos vindos de escolas C+S nunca tenham entrado num laboratório e estejam menos preparados do que os alunos que frequentaram o 7º, 8º e 9º anos numa escola secundária.
Quanto a essa falta de preparação para o ensino experimental por parte de alguns professores que referiu, julgo que a resposta passará por uma maior aposta na formação contínua obrigatória para os novos programas que vão surgindo, porque o ensino das ciências vai mudando e necessita de uma actualização permanente, baseada numa formação objectiva, dirigida para a sala de aula, e menos teórica. Não há reforma que aguente sem uma forte aposta na formação dos professores. 

O programa Ciência Viva foi considerado uma mais valia para o ensino das ciências experimentais, nomeadamente a Física e a Química. Com a sua extinção perde-se uma oportunidade para cativar os alunos para as ciências. Concorda?

Sem dúvida, até porque esse programa era especialmente vocacionado para a sala de aula, não era teórico. Através dele as escolas trabalhavam em rede - no caso das escolas do Porto, onde se incluiu a Escola Secundária Carolina Michaelis, desenvolveu-se uma parceria com as universidades de Aveiro e do Porto -, planificavam aulas em conjunto e foi possível equipar muitas escolas com material. Mas, agora que muitas escolas estão razoavelmente equipadas, perdeu-se esse trabalho em rede e a mais valia que ele trazia em termos de valorização do trabalho dos professores.

Porquê os maus resultados dos alunos portugueses nas disciplinas de Física e Química e, de uma maneira mais geral, nas áreas científicas?

Na minha opinião julgo que existe uma grande permissividade, o que faz com que se baixe o grau de exigência face aos alunos. Fala-se muito dos professores e das más condições das escolas, mas considero que será essa a principal causa.

Outra das questões levantadas pelo Livro Branco da SPFQ questionava quais os critérios a definir tendo em vista um programa de formação contínua que satisfizesse as necessidades reais dos professores. Quais são eles, na sua opinião?

Para que essa formação correspondesse às necessidades reais dos professores, ela deveria centrar-se nos novos programas que vão surgindo e vocacionar-se para as actividades da sala de aula, de uma forma rigorosa e científica, de maneira que as actividades ali desenvolvidas sejam agradáveis para o aluno, mas não facilitadoras, dando-lhe que pensar, questionar e criticar. Mas o ensino experimental é muito trabalhoso, não é uma tarefa de gabinete, e a maior parte dos professores, deve admitir-se, está acomodada.

Isso sugere uma crítica ao trabalho dos professores. Concorda com a avaliação do desempenho?

Concordo que haja uma avaliação não no sentido de penalizar, mas no sentido formativo. Acho que seria interessante haver uma inspecção pedagógica que servisse para melhorar a qualidade de ensino, facultando uma espécie de estágio permanente.

Mas as acções de formação não são feitas também com a participação dos professores das respectivas áreas disciplinares?

Sim, mas estou convencida que os responsáveis pelos centros de formação não convocam as pessoas certas. A maioria das acções de formação são dadas por docentes do ensino superior, que podem saber muito em termos teóricos mas não têm qualquer prática no domínio do ensino experimental, e não fazem ideia do que é lidar, na prática, com os alunos do ensino básico e secundário.

Não será também um problema da própria oferta das instituições de formação?

A oferta da maioria das instituições formadoras não vai de encontro às necessidades do programa e dos professores. Mas, ao mesmo tempo, estes preocupam-se mais com os créditos para progressão na carreira e procuram as acções de formação que dêem menos trabalho ? nesse aspecto não diferem muito dos alunos. Por outro lado, estou convencida que se houvesse acções de formação interessantes, actualizadas, dirigidas para a prática e gratuitas os professores as frequentariam com maior assiduidade.

Não deveria partir também da iniciativa das associações de professores da respectiva área disciplinar?

As associações de professores de Física e de Química deixam um pouco a desejar quanto ao poder de iniciativa, e a Sociedade Portuguesa não tem responsabilidade nessa matéria. Provavelmente deveria ser o próprio ministério da educação a responsabilizar-se por essa matéria e "obrigar" os professores a frequentarem acções de formação. Recordo-me que após o 25 de Abril isso acontecia e funcionava? De resto, as poucas acções de formação com algum interesse que frequentei nos últimos anos estavam integradas no Programa Ciência Viva.

Outro dos aspectos referidos no Livro Branco era que a falta de trabalhos experimentais se devia à falta de tempo lectivo e de formação dos professores. Concorda?

As coisas mudaram entretanto, nomeadamente com a introdução dos blocos lectivos de 90 minutos, que era algo que andávamos a "pregar" há muitos anos... Dessa forma é possível desdobrar as turmas em duas metades e realizar aulas experimentais com condições de aprendizagem para os alunos. Porém, lamentavelmente, algumas escolas não aproveitam esta oportunidade e mantêm o modelo da turma única, o que é um bom indicador do desinteresse em potenciar as aulas experimentais.

Outra questão importante quando se aborda o ensino da Física e da Química é a segurança dos laboratórios. Há cerca de três anos foi publicado um relatório que dava conta de diversas falhas de segurança nos laboratórios escolares. Foi tomada alguma medida no sentido de resolver os problemas então apontados?

Não. Apesar de no ensino da Física esse problema se colocar com menor pertinência, já que as experiências realizadas não têm um grau de risco elevado - e quando têm o próprio professor encarrega-se de realizá-la -, quanto à Química o cenário é diferente, já que se lida com reagentes que podem representar algum perigo. Porém, a maioria dos laboratórios não correspondem às condições mínimas de segurança. E são várias as falhas: as portas dos laboratórios deveriam abrir para o exterior e não para o interior, como acontece frequentemente; não existem hotes ? grandes exaustores que aspiram fumos tóxicos - e não há qualquer tipo de tratamento dos resíduos produzidos na sala de aula, que são simplesmente despejados pela banca abaixo, só para dar alguns exemplos.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Daisi Leitão
Professora de Fisico-Químicas na Escola Secundária Carolina Michaelis, Porto
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Daisi Leitão
Professora de Fisico-Químicas na Escola Secundária Carolina Michaelis, Porto
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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