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Lençóis de água

São estórias de água. Do tempo em que os lençóis ficavam a corar na relva. Em que as crianças tomavam banho em alguidares. E a água andava de bica em bica, por bouças e poços, ribeiras e rios. 


Os bichos do rio    

Alcina Miguel tinha medo dos reflexos na água.

Umas semanas antes de casar Alcina Miguel pegou em todo o seu enxoval e foi lavá-lo ao ?rio grande do Outeiro?. Um riacho perto da ilha onde morava com os pais no Bairro das Oliveiras, na Rua Júlio de Matos, no Porto. ?Os linhos e as rendas estavam todas amarelas?, recorda. Foram muitos anos em que estiveram guardados. ?E para levar tudo fresquinho?, Alcina fez uma trouxa pegou no sabão e deitou mãos à água. ?Só lençóis eram 14!? Estava-se em 1954, Alcina tinha 24 anos. Agora com 73 conta que esta é uma das recordações mais fortes que guarda de como era vivida a vida sem água canalizada em casa.
Na ilha todos se abasteciam na Fonte do Outeiro, situada na rua que lhe dava o nome. A roupa era lavada nos riachos que por ali brotavam. Alcina preferia o rio grande do Outeiro. Havia um caudal grande de água, o único problema é que tinha de se lavar de joelhos. Para os poupar havia quem mandasse fazer ao carpinteiro umas caixas de madeira, chamavam-se os ?caixões de lavar?. Outras, com menos posses, aproveitavam os caixotes das barras de sabão aos quais tiravam um dos lados. ?Uns melhores, outros piores, os ?caixões? davam jeito, punha-se uma rodilha nos joelhos e já estava!?, simplifica Alcina. 
Desde os seis anos que se recorda de ir lavar roupa ao rio. Nessa altura morava em Mondim de Bastos. Ia sozinha mas nessa altura ?não havia perigo?, diz. O seu único medo vinha das sombras dos ramos das árvores reflectidas nas águas. ?Não sabia o que aquilo era, pareciam-me bichos e eu tinha medo de meter as mãos na água!?, sorri.  


Um depósito no telhado

O pai de Joaquim Oliveira antecipou a canalização na sua Casa da Fonte.

Joaquim Oliveira tinha sete anos quando na sua residência em Santa Marta, Penafiel, o pai que era lavrador mandou construir uma obra de grande envergadura. Um depósito de água em cimento, no telhado, com a respectiva canalização que o ligava ao poço existente no quintal. Em cada poço havia uma mina. A de seus pais tinha 15 metros de comprimento ?e estava sempre cheia?. Para ter água em casa era preciso dar à bomba, uma tarefa para dois homens. Depois era ver a água a subir da mina pelo cano de pesca, a sair do poço para a canalização que a levava ao depósito até que este ficasse cheio. Daí era distribuída para algumas divisões da casa.
Para além do poço, havia uma fonte do lado de fora da casa que por isso era conhecida como a Casa da Fonte. Pelo mesmo motivo toda a família de Joaquim era apelidada de os Oliveiras da Fonte. Em tempos de seca toda a freguesia se abastecia nessa fonte. ?E eu até cheguei a criar lá um peixe?, recorda Joaquim. ?A água era muito boa!? Na altura, diz, ?as pessoas conheciam as nascentes e sabiam da sua pureza, não havia perigo em beber a água das bicas!? Hoje, aos 67 anos Joaquim bebe água de garrafão. ?Água da companhia, só para tomar pastilhas!?, graceja.
Para além do consumo doméstico a água das nascentes servia para a rega dos campos. No terreno de cultivo do seu pai a rega era feita a partir de uma mina que de vez em quando cabia a Joaquim limpar. Nessas alturas não havia nada que lhe desse mais prazer do que fazer de uma couve concha e beber a água directamente da mina.  


Lavar e pôr a corar

Maria do Carmo Monteiro recorda o ritual da lavagem da roupa.

A última vez que Maria do Carmo Monteiro, 60 anos, viu um tanque igual aos que povoaram a sua infância foi durante uma visita que fez ao Convento de Singeverga, entre Stanto Tirso e Guimarães. ?Deu-me uma saudade do tempo em que estendia o lençol no ar e o deixa cair na água?? Nesses tempos, ainda garota, Maria do Carmo  vivia em Gemunde, uma freguesia do concelho da Maia. E a lavagem da roupa era um ritual que podia durar três dias. 
O dia começava cedo para se conseguir o melhor lugar no tanque. ?O que fosse mais próximo da bica ou da nascente de onde brotava a água. Chegada ao tanque a roupa ia a demolhar e era separada. De um lado tudo o que era branco, do outro o que era escuro. De seguida era esfregada com sabão e molhada várias vezes. E ficava de molho de um dia para o outro numa bacia ou alguidar com água e sabão. Ao segundo dia a roupa era novamente molhada para tirar o sabão e, no caso de ser de cor branca, era ensaboada para ser estendida na relva a corar. ?A roupa escura, por mais suja que estivesse, não podia ser deixada a corar?, explica Maria do Carmo. Caso contrário, ficaria manchada de sabão. O tempo de corar durava a tarde inteira. ?Mas a roupa não podia secar enquanto corava, era preciso que alguém a regasse de meia em meia hora?, dependendo do calor. A roupa era mesmo regada com um regador de ?furinhos? para não a encharcar. Se a roupa ficasse exageradamente molhada a relva deixava de a amortecer e ela sujava-se de terra. Depois da cora, a roupa era definitivamente passada por água para lhe retirar o sabão e posta a secar. ?Quem tinha arames nos quintais, levava a roupa para secar em casa, quem não tinha, estendia-a nos arames que vedavam as propriedades dos lavradores ou até mesmo nas silvas perto do tanque.? As lavadeiras ?profissionais?, recorda Maria do Carmo por norma deixavam a roupa a secar perto do tanque nos arames das vedações ou nas silvas. Evitavam assim andar com grandes quantidade de roupa de um lado para o outro.
Por vezes o tanque era palco de zaragata entre lavadeiras profissionais e donas de casa lavadeiras. As primeiras delimitavam território no tanque e não gostavam que as outras lhes roubassem os ?postos de trabalho?. Mas sendo o tanque público, quem chegasse primeiro apanhava a água mais perto da nascente e portanto mais limpa. As outras tinham de se contentar com a água mais suja.  


Um lugar na nascente

Rita do Amaral lavava a roupa de quem tinha dinheiro para a mandar lavar.

Rita do Amaral, 74 anos, lembra-se de ver a freguesia de Pedrouços, na Maia, onde mora desde os nove anos, cheia de ribeiros e regatos. Em lugares onde agora estão edificadas as mais variadas construções e estradas. ?Nem sei como isso é possível?, questiona. Nos inícios de casada fez da água o seu ganha-pão. Já lá vão 53 anos. Era lavadeira juntamente com a irmã Deolinha. Com destreza nas mãos faz uma rodilha e coloca-a na cabeça. Agora é só imaginar a bacia de alumínio com 20 quilos de roupa encharcada. Lavava a roupa de quem tinha dinheiro para isso: esposas de senhores abastados, jovens estudantes, filhos de lavradores, que viviam sozinhos nas pensões do Porto. O rio ficava a 15 minutos a pé de sua casa e para lá chegar Rita passa por muitas bouças e campos de lavradores. Segundo as suas ?projecções? se ainda existisse o rio deveria ser visível na Estrada da Circunvalação, por detrás do edifício onde está situada a Liga Portuguesa Contra o Cancro.
Para arranjar o melhor lugar, Ritinha chegava ao rio às 4h30 da manhã. Era fundamental ficar o mais perto da nascente possível para evitar levar com a água suja proveniente das outras lavagens. Era ainda imprescindível assegurar um bom coradouro. Uma vez posta a corar, a roupa ficava entregue aos cuidados de uma das lavadeiras que a regava durante a tarde evitando que secasse ensaboada. Ao fim da tarde Rita voltava ao tanque para dar as ?últimas voltas?.
Mas para Rita não ter água canalizada em casa significava ter ainda de dar banho aos quatro filhos, duas raparigas e dois rapazes, no alguidar. Uma tarefa que recorda com saudade. O sábado era o dia em que os miúdos eram lavados da cabeça aos pés. O alguidar era colocado no quintal comunitário onde havia um poço. A água aquecida no fogão a lenha. E os pequenos em fila indiana. ?Era tão divertido que toda a vizinhança os ia ver a tomar banho.?


Dicionário de Água e Sabão

Barrela
mistura de bocados de sabão e água, por vezes fervida, onde se mergulhava a roupa, usada para tirar as nódoas mais difíceis. Para além do sabão a mistura podia ter cloreto em pó, um produto que ajudava a branquear a roupa. O cloreto era sobretudo usado pelas lavadeiras ?profissionais? que deste modo evitam perder muito tempo a corar a roupa. O que lhes era extremamente útil dadas as grandes quantidades de roupa branca - lençóis, toalhas turcas, de mesa e guardanapos ? que lavavam.

Bomba de Picoto
usada para extrair a água dos poços, tinha uma espécie de manivela lateral que se erguia e baixava para fazer verter a água.

Caixões de Lavar
caixas de madeira construídas sem um dos lados para que as lavadeiras ? amadoras e profissionais - se pudessem ajoelhar neles a quando os tanques não permitiam a lavagem da roupa em pé.

Coradouro
lugar na relva onde se estendia a roupa escorrida mas ensaboada. A roupa enquanto corava devia ser mantida húmida para desta forma branquear com o calor do sol.

Demolhar
mergulhar a roupa durante algum tempo na água.

Lavadeiras
eram as verdadeiras ?profissionais? da água e do sabão. Mulheres que lavavam grandes quantidades de roupa, provenientes tanto de casas particulares abastadas, como de hotéis e residenciais das cidades.

Lavadouro
zona onde se esfregava a roupa, era feito de pedra e ladeava os tanques onde se lavava de pé ou de joelhos.

Rodilha
pano enrolado em forma de coroa e usado na cabeça para a proteger do peso da bacia ou do cântaro ao mesmo tempo que ajuda a equilibrar estes recipientes. Da forma como se faz a rodilha depende a sua eficácia. Uma rodilha mal feita deslaçava e se a lavadeira não fosse ladina deixava cair a bacia aos chão. Para fazer uma rodilha colocam-se os dedos da mão abertos mantendo-se segura, com o polegar, a ponta do pano; a outra ponta solta é enrolada entre os dedos indicador e mindinho. O anelar não pode ficar preso pois é com ele que se prende a ponta solta.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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