Mobilizou a comunidade educativa para a sua causa. A Escola da Ponte, em Vila das Aves, quer continuar a ser como é. Da forma que todas as outras escolas podiam vir a ser.
A tesoura avança criando pequenos rectângulos de cartolina azul. Há um monte deles em cima da mesa do refeitório. Constança, Sara e Catarina, 7º, 6º e 5º anos, ainda têm mais algumas folhas de tamanho A3 para cortar. Sem tirar os olhos do que estão a fazer conversam sobre um tema que as tem inquietado. Constança está de partida da Escola Básica Integrada da Ponte, em Vila das Aves. Sara e Catarina querem saber quando ela as vai deixar. Esta última palavra faz nascer na expressão de Constança um ar de recusa. ?Eu nunca vou deixar esta escola!?, responde. Constança e mais 34 alunos, todos no 7º ano, vão ser transferidos para a Escola Básica 2º e 3º ciclo de Vila das Aves. Esta é para já uma das certezas relativamente ao dossier da Ponte. Os alunos vão ser divididos em duas turmas e ter professores ?que se disponibilizaram a trabalhar com eles na óptica do projecto educativo da Escola da Ponte?, garante Ademar Ferreira, director deste estabelecimento de ensino. Ou seja, os professores vão partir do capital cultural destes alunos para se adaptar a ele. Algo que, na sua opinião, ?toda a escola devia fazer?. Entretanto, aguardam-se as negociações entre a escola e o Ministério da Educação para o estabelecimento de um contrato de autonomia. E é nessa negociação que se vai alicerçar o futuro da Escola da Ponte. ?Fará sentido que o Estado financie um projecto até ao 6º ano e depois se desinteresse do restante percurso?? A interrogação de Ademar Ferreira, há-de ser repetida muitas mais vezes. Alargar a oferta escolar ao 9º ano ?é uma questão quase decisiva para o futuro do projecto educativo?, diz o director. É que ?ao saírem com 11, 12 anos, no pico da idade das grandes rupturas, estes adolescentes vão perder grande parte do capital formativo acumulado porque num sistema de ensino tradicional não o vão exercer!?, contesta Ademar Ferreira. Em jogo podem estar competências ao nível da auto-pesquisa e da auto-avaliação, bem como outras, adquiridas durante os seis primeiros anos do percurso escolar. Por isso o director é decisivo: ?O projecto tem de prosseguir até que os alunos estejam preparados para o abandonar, ou seja, aos 15, 16 anos, numa altura em que essas competências estejam completamente consolidadas.? Mas para já a solução não passa por aqui. Até porque para albergar o 3º ciclo do Ensino Básico a escola teria de crescer em, pelo menos, mais um pavilhão. Ou mudar-se para um edifício novo. Um investimento que o Ministério da Educação não está disponível para fazer por agora, ainda que ?não tenha fechado a porta ao alargamento?, refere Ademar Ferreira. Para Constança e os restantes colegas do 7º ano, as portas da Escola da Ponte vão estar sempre abertas. Sabendo disso, a aluna disfarça alguma tristeza e desdramatiza o inconformado ?Eu nunca vou deixar a escola da Ponte? que acabou de lhe escapar da garganta. Diz às amigas que vai apenas ter ?umas aulas no liceu??. E promete visitas frequentes à medida que conversa vai cedendo lugar ao som acutilante das tesouras. Há muito trabalho a fazer. Dos rectângulos azuis Constança, Sara e Catarina vão fazer cartões de eleitor para os novos alunos. Faltam dois dias para as eleições da Assembleia da Escola. As quatro listas concorrentes, A, B, C e D estão, por isso, em ?fase de campanha?. Nas paredes da escola vêm-se alguns cartazes com as promessas eleitorais de cada uma das listas passadas a computador: a A promete ?pintar definitivamente o campo de futebol?; a D ?organizar uma prova com perguntas tipo Elo Mais Fraco?? Quem ganhar vai ter de cumprir tudo o que escreveu no programa eleitoral. Ás vezes pode até cumprir mais do que prometeu. ?Quando a nossa lista ganhou também cumprimos as promessas dos outros que nos pareceram importantes?, explica Constança, que já foi duas vezes presidente do Conselho da Assembleia por maioria absoluta.
Sérgio, o guia
Sérgio é outro dos alunos que terá de abandonar a Escola da Ponte. Tal como Constança está no 7º ano. Estava a estudar Ciências quando decidiu trocar a matéria pela actividade de guia. ?Quer que lhe mostre a escola??, pergunta voluntarioso. ?Mas antes é preciso falar com o professor Zé [José Pacheco]!?, alerta o aluno. Autorização conseguida, Sérgio inicia o roteiro. A primeira paragem acontece no pavilhão Rubem Alves. É lá que se aprende o Português, o Inglês, o Francês, a História e a Geografia. Os cerca de 50 alunos estão divididos em grupos de quatro por cada mesa redonda. Mas não estão todos a estudar a mesma matéria, até porque na mesa podem estar alunos do 3º ao 7º ano. ?Cada menino tem um Plano de Estudos onde escreve o objectivo que está a estudar?, adianta Sérgio enquanto uma colega tira o seu plano da mochila para mostrar. É também no plano, uma folha A3 dobrada ao meio, que o aluno regista o trabalho para casa que se propõe a fazer. No placar há uma longa lista de objectivos que os alunos devem adquirir nas áreas de estudo daquele pavilhão. O aluno escolhe e regista o objectivo que se propõe adquirir no seu Plano de Estudos. Depois começa o seu estudo. Quando o aluno sente que já assimilou o conhecimento que se propôs adquirir o professor avalia-o. Se a avaliação é positiva o aluno regista um novo objectivo no plano e inicia o seu estudo. A aprendizagem segue assim. Quando um aluno tem dificuldade no estudo de algum dos objectivos escreve o seu nome e a dúvida que tem num quadro com o título ?Eu preciso de ajuda?. ?Depois o professor ajuda-o. Pode acontecer que um colega mais velho também o possa ajudar. Quando o menino já estudou o objectivo escreve-o no quadro ?Eu já sei?, para o professor o avaliar?, explica Sérgio enquanto se encaminha para a porta. No quadro preto alguém escreveu: ?14 de Outubro de 2003 ? 4573 Assinaturas no Manifesto Fazer a Ponte.? Vamos? Á saída do Pavilhão Rubem Alves um cheirinho a pudim leva o guia a optar por entrar no refeitório. A hora do almoço ainda tarda. Constança, Sara e Catarina continuam a fazer cartões de eleitores. Sérgio aproveita então para mostrar os contentores da reciclagem de papel, plástico e pilhas e explicar que os meninos trazem as pilhas e o papel que gastam em casa para reciclar na escola pois em Vila das Aves só existem vidrões. ?Os mais pequenos às vezes enganam-se e deitam aqui o lixo?, comenta Sérgio ao abrir o pilhómetro e a deparar com alguns papéis. ?Temos de limpar isto!? Antes de sair só uma espreitadela à ementa: sopa de abóbora, bolinhos de bacalhau com salada de feijão-frade e arroz e para a sobremesa pudim. ?Eu aqui gosto de tudo?, atira mal acaba de ler o que irá comer ao almoço. Seguimos para a sala da Iniciação e Transição onde estão os alunos dos dois primeiros anos. Assim que entramos na sala Sérgio elucida: ?Nesta escola não há a, e, i, o, u.? Dispersos por várias mesas alguns alunos copiam para os cadernos frases escritas em tiras de cartolina branca. Desta forma, esclarece Sérgio, vão aprendendo o alfabeto todo ao mesmo tempo. Outros ?meninos? dedicam-se às contas. Usando dois recipientes de plástico transparentes, talvez metades de garrafas de plástico salvas da reciclagem do refeitório, uma ?menina? divide em partes iguais um conjunto de palheiras. Outro grupo de alunas dedica-se à resolução de um dos problemas escritos no quadro preto: ?A Mariana foi visitar a coelheira da avó Zé, contou 48 patas. Quantos coelhos havia na coelheira?? Deixamos os pequenos nas contas e nas letras e vamos para o espaço preferido de Sérgio. A escultura de uma árvore com tronco de tábuas de madeira, ramos de pernas de ferro retiradas de bancos velhos e folhas de alumínio, feita pelos alunos e professores, faz suspeitar de que o espaço seguinte está ligado às Artes. Entramos na Sala Artística. Um pequeno leitor de CD dá ambiente ao trabalho dos alunos. Estão a raspar desenhos em folhas cobertas de tinta-da-china já seca e a deixar a descoberto as pinturas dos lápis de cera feitas anteriormente. ?O pincel não é uma esfregona?, diz a professora a um grupo de alunos que ainda está a usar a tinta-da-china. A música é uma presença notória na sala, mas é usada em todos os espaços para nivelar o barulho dos alunos. ?Se os meninos fizerem pouco barulho e se portarem bem podem ouvir as músicas que mais gostam??, explica Sérgio que elege a cantora Shakira como sua preferida. Durante o ano lectivo a escola desenvolve um projecto multidisciplinar sobre uma determinada temática. No ano passado o mote foi ?A escola dos nossos avós?. Entre as actividades desenvolvidas conta-se uma dramatização de como seria uma aula naquele tempo. Sérgio foi o ?menino Pereira?, fazendo uso do seu último nome. ?Cantamos a tabuada, o hino de Portugal, o Pai Nosso, tal como os nossos avós faziam.? Mas também juntaram livros escolares e brinquedos da época. Alguns desses brinquedos fizeram-nos com a ajuda dos professores. ?Jogamos o peão??, acrescenta Sérgio já com alguma saudade. Com o roteiro quase no fim, o guia parece um pouco triste. Ao revisitar algumas memórias talvez se tenha lembrado de que está de partida. Sem birra, conformado. Tal como Constança que continua a sua tarefa para a campanha eleitoral. As folhas inteiras de cartolina azul já desapareceram. No seu lugar vão surgindo os cartões de eleitores. Fica a faltar pegar na máquina digital para tirar as fotografias aos eleitores. Colar as fotos e plastificar os cartões. ?Será que vamos conseguir?? interroga-se Catarina a quem a tarefa parece muito longe do final. ?Se trabalharmos para isso!?, responde Constança, sem hesitação.
Esclarecimento publicado no Jornal a Página da Educação N.º 129 de Dezembro de 2003
O mensário A Página da Educação inseriu no número de Novembro uma reportagem sobre a EBI de Aves/S. Tomé de Negrelos (Escola da Ponte) intitulada ?Era uma escola muito engraçada?, da autoria de Andreia Lobo. Nessa reportagem, é-me atribuída a autoria de algumas afirmações que a jornalista reproduz na forma de discurso directo, como se as tivesse gravado e trnascrito. Não é verdade: a jornalista manteve, de facto, um pequeno diálogo comigo, durante o qual se limitou a tirar algumas notas, que depois, supostamente, utilizaria na redacção da reportagem. Devo dizer, em abono do escrúpulo profissional da jornalista, que quase todas as afirmações que me são imputadas traduzem, no essencial, o meu pensamento. Há uma, porém, que definitivamente eu jamais poderia ter produzido: porque não traduz o que eu penso e, muito especialmente, porque não corresponde à verdade dos factos. De acordo com o texto da reportagem, eu teria afirmado que os alunos do 7º ano a transferir para a EB 2,3 de Vila das Aves iriam ter professores ?que se disponibilizaram a trabalhar com eles na óptica do projecto educativo da Escola da Ponte?. Esta afirmação, nos exactos termos em que aparece formulada, não é verdadeira, como sabem, de resto, todos os mais directamente envolvidos no processo de transferência dos alunos da EBI de Aves/S. Tomé de Negrelos para a EB 2,3 de Vila das Aves. Aos professores escolhidos pela EB 2,3 para trabalhar com as duas turmas dos ex-alunos da Ponte apenas foi pedido o óbvio: que, na organização e desenvolvimento das actividades curriculares e na redacção pedagógica, procurassem respeitar e valorizar o mais possível o património educativo acumulado por essas crianças no âmbito do projecto Fazer a Ponte. Foi exactamente isto e nada mais do que isto o que eu pretendi significar à repórter de A Página da Educação.
Vila da Aves, 11 de Novembro de 2003
O presidente da Comissão Instaladora Ademar Ferreira dos Santos
Nota da Redacção: A não utilização do gravador foi pedida pelo entrevistado.
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