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O mundo a preto e branco

?Existem fantasmas nos espíritos de muito docentes que devem ser exorcizados: o poder dos alunos, dos encarregados de educação, da máquina fiscalizadora e burocrática do ministério da educação, dos políticos, dos sindicatos, dos pedagogos reformistas, da comunicação social. Uma vez deles libertos, talvez fosse a via de os profissionais recuperarem a auto-confiança que as actuais políticas de ensino remeteram para as ruas da amargura?.
(Gabriel Mithá Proença, 2003:17)

Reconquistar o poder que os alunos, os encarregados de educação, o ministério, os sindicatos, a pedagogia e a comunicação social detêm sobre a Escola, eis a receita que Gabriel Proença propõe para que os professores possam recuperar a sua auto-
-confiança profissional. Condição que, na sua opinião, lhes permitirá voltar a conduzir pessoas, assumindo, assim, o seu papel como formadores. ?Aos docentes falta a luz que os ilumine na descoberta do seu próprio poder. A não ser assim todos perderemos?, sentencia G. Proença.
Num mundo construído a preto e branco, onde as soluções se encontram à mão de semear, esta tese é sedutora, embora se defronte à partida com um pequeno problema, o de saber se os outros, que não são professores, se encontram dispostos a permitir que nós, quais déspotas esclarecidos, possamos determinar, a partir da nossa infalibilidade, o que a eles mais lhes convém. Nós, os professores, aqueles que nunca erram, aqueles que nunca têm dúvidas, aqueles que sabem sempre o que têm que fazer, desde que os párias das Ciências da Educação não os impeçam de salvar o mundo através da salvação da Escola. Tão simples quanto isto. Tão simples quanto querer pensar a educação como um acto de submissão, num mundo que  exultou com a queda do Muro de Berlim, se insurgiu contra Tianamen e que protesta de forma veemente contra o fundamentalismo islâmico.
Libertem-se os professores das amarras de uma Pedagogia e erradique-se as crianças do centro da vida escolar, grita-se, hoje a torto e a direito, acenando-se com um manual do 10º ano que usa diálogos do Big Brother como material de estudo dos alunos. A prova, mais uma, da degradação da Escola, em Portugal, dos efeitos perniciosos da «pedagogice» e dessa ideia peregrina de pretender transformar as salas de aula em espaços lúdicos onde cada aluno pode fazer o que muito bem quer.
O que consideramos ser espantoso, é que sejam professores aqueles que dizem e escrevem isto. Se fosse o Dr. Pacheco Pereira, o Dr. José Manuel Fernandes ou a Drª Filomena Mónica, ainda vá que não vá. Estes não são obrigados a saber que o programa de Português do 10º ano não exige diálogos do Big Brother, que os professores podem escolher outros manuais se não concordarem com tal opção ou até que podem decidir trabalhar com os seus alunos a partir de outras fontes e utilizando outros materiais. Esses não são obrigados a saber que não é por causa dos alunos estarem no centro da vida em escolas onde, afinal, nunca foram o centro de coisa nenhuma que esta polémica se levantou. Quem não é professor não tem que saber que estamos perante um episódio que revela, mais uma vez, quão necessária é a qualificação pedagógica dos professores.
A mesma qualificação pedagógica que nos permitirá compreender que a prioridade que se confere, no âmbito da sala de aula, à aprendizagem dos alunos não implica que o papel dos professores seja ?o papel do polícia de trânsito entre o conhecimento e o aluno?, nem que o trabalho quotidiano consiste em formar ?clubes de amigos para dinamizarem auto-aprendizagens?. Quem é pedagogicamente qualificado sabe que tem de fornecer recursos aos alunos para que estes possam aprender, sabe que tem de lhes propôr desafios com os quais eles se podem confrontar, sabe que tem que decidir sobre quais as modalidades de apoio a disponibilizar e quem é que deve e como é que deve ser apoiado. Quem é pedagogicamente qualificado sabe que tem que avaliar para poder tomar as decisões mais acertadas, aquelas que possam promover a ocorrência de aprendizagens funcionais e significativas. Quem é pedagogicamente qualificado sabe que qualquer professor, sendo um elemento decisivo para os alunos, não pode decidir, contudo, quando e como é que estes aprendem. Sabe que pode influenciar, sabe que pode criar as condições para que isso aconteça, mas sabe também que não o pode determinar a seu belo prazer. Daí que todos aqueles que são pedagogicamente qualificados saibam que colocar os alunos no centro das preocupações nas escolas não pressupõem um acto de demissão, mas uma opção que nos confere, a nós professores, a importância que até esse momento nunca tínhamos tido, mesmo que o respeitoso silêncio dos alunos nos pudesse convencer do contrário.
O problema dos professores, o nosso problema, não passa, como pretende Gabriel Proença, por recuperar  «o dom da palavra?, não passa, apenas, por voltar a ser ?um bom transmissor de conhecimentos?, não se resolve no momento em que decidirmos banir ?os textozitos, sempre pouco extensos e muitas vezes desconexos?, para, em vez disso, circunscrevermos a sua actividade à escuta do que lhes dizemos e à leitura de  manuais escolares que lhes permitem, acabada a frequência, ficar com uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 128
Ano 12, Novembro 2003

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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