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Memórias bordadas: uma possibilidade de oralidade

AS BORDADEIRAS SÃO CONHECIDAS COMO «MARIQUINHAS».  O TRABALHO DELAS NÃO SE LIMITA A APRENDER PONTOS DE BORDADO, MAS PRINCIPALMENTE COLOCAR EM PEDAÇOS DE PANO SUAS MEMÓRIAS, RETRATANDO SUAS DORES, AMORES, AMARGURAS, OS SENTIMENTOS ARMAZENADOS DURANTE A SUA VIDA.

Registrar os momentos vividos é importante para a construção da nossa história, para futuras trocas e a narrativa de novas histórias. Para um grupo de mulheres que vivem em um assentamento de sem-casa, o conjunto Vila Mariquinhas, essa possibilidade surgiu com a oficina ?Memória e Cultura?, idealizada pelo artista plástico Wilson Avellar, dentro do projeto ?Arte e Criação?, da prefeitura de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais. As bordadeiras são conhecidas, por isto, como ?Mariquinhas?. O trabalho delas não se limita a aprender pontos de bordado, mas principalmente colocar em pedaços de pano suas memórias, retratando suas dores, amores, amarguras, os sentimentos armazenados durante sua vida. Elas trabalham ouvindo poesias de Carlos Drummond de Andrade ? um poeta maior ? e textos de Clarice Lispector ? uma grande escritora ?, deixando aflorar a sensibilidade reprimida, utilizando os fios coloridos da memória e de linha. Em cada quadro bordado por elas, as histórias são contadas de diferentes maneiras, pois a memória as reinventa, e ao juntar todos os quadrados bordados de memória forma-se a colcha da vida de cada uma. A ?Colcha de retalhos? foi o tema/título de um filme que inspirou o idealizador da oficina.
Com a ruptura nas regras do conhecimento dito verdadeiro, foi possível o reconhecimento das múltiplas possibilidades de criação de saberes. Foi-se tecendo, assim, uma rede de idéias, na qual a cada nó surgem outras tantas redes, tecendo conhecimentos novos com saberes já sabidos, acabando com a hierarquização, com a linearidade, resignificando memórias.
A memória de cada sujeito tem a ver com as singularidades de sua vida que envolve: a convivência com a sua família, o contexto social ao qual pertence, o trabalho que executa ou não pode mais executar, sua religião, as lutas que desenvolve com seus companheiros. Tudo isso junto organiza as peculiaridades que o fará diferente dos demais, mas sempre muito próximo de outros.
Em uma sociedade em que a escrita é uma das armas de poder, as ações humanas nos cotidianos vividos ? a ?tática é a arte do fraco?, nos ensina Certeau(1) ? surgem em meio a emoções, ponto central dos bordados das ?Mariquinhas?. Nesse espaço/tempo, a imagem é usada como uma possibilidade de narrativa, indo por outro caminho, diferente da oralidade que as envolve sempre. Se para elas seria difícil escrever em papel, pelos limites que têm do domínio dessa técnica, com essa tática elas ?escrevem? suas histórias, suas memórias.
Através de seus bordados podemos ?ler? que vivem em um contexto estruturado, não somente pelo capitalismo, mas também pelo patriarcado, no qual as mazelas da vida são por elas carregadas. No entanto, os modos de contar e a possibilidade criada e vivida permitem descobrir o que cada uma pensa, acredita e faz nos diversos espaços/tempos cotidianos nos quais, a cada imposição, subvertem o imposto, criando caminhos e desvios, para que a voz de todas possa ser ouvida e respeitada e para que a troca respeitosa seja  uma prática cotidiana.

(1) CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano ? as artes de fazer. Petrópolis,RJ : Vozes, 1994.
Vozes, 1994.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 128
Ano 12, Novembro 2003

Autoria:

Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas
Grupo de Pesquisa Redes de Saberes - Educação e Comunicação, Questão de Cidadania - Univ. do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas
Grupo de Pesquisa Redes de Saberes - Educação e Comunicação, Questão de Cidadania - Univ. do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

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