Página  >  Edições  >  N.º 128  >  O direito do mais forte à liberdade ou de como o direito à escolha, no ensino, nem sempre é o que parece

O direito do mais forte à liberdade ou de como o direito à escolha, no ensino, nem sempre é o que parece

PARA SE EXERCER UM DIREITO, NUMA DEMOCRACIA NEOLIBERAL, BASTA QUE ELE ESTEJA CONSAGRADO NA LEI E QUE ESSE DIREITO ESTEJA FORMALMENTE CONSAGRADO? NÃO, NÃO BASTA, E ALGUNS EXEMPLOS NO ENSINO AÍ ESTÃO PARA O PROVAR.

O título, roubado a Fassbinder, lança uma questão importantíssima nos dias de hoje: para se exercer um direito, numa democracia neoliberal, basta que ele esteja consagrado na lei e que esse direito esteja formalmente consagrado? Não, não basta, e alguns exemplos no ensino aí estão para o provar.
Para reflectir sobre esta questão escolherei um exemplo extremo: o chamado ?voucher de ensino?, que Bush prometeu na sua campanha eleitoral e agora a sua administração quer introduzir.
O seu argumento não poderia ser mais cândido: os pobrezinhos e a maioria dos negros, dos latino-americanos e de muitas minorias étnicas que vivem nos Estados Unidos, não têm direito a frequentar escolas ou universidades privadas, porque são pagas e caras. Portanto estes cidadãos estão em situação de desigualdade. Mas ele resolve o assunto com muita facilidade: dá um voucher de ensino a todos os que demonstrarem que não podem pagar uma escola e todos passam a ter direito a escolher o estabelecimento de ensino que pretendem. As escolas públicas, ?más, sujas e problemáticas?, serão cada vez menos, a concorrência entre escolas será cada vez maior, todas lutarão por conseguir níveis de excelência para captar mais alunos e ter mais lucros, e todos viverão felizes, com qualidade de ensino e com igualdade, com uma liberdade máxima, no melhor dos mundos.
Bonito, mas enganador. A questão do voucher é muito semelhante à das propinas, e pode colocar-se, sinteticamente, assim: o voucher permite que todos possam ter dinheiro para pagar estudos, mas sem ele, e com o ensino público gratuito, já todos podem estudar, mesmo assim com as enormes limitações que conhecemos. As escolas públicas são más e as privadas boas? Portugal é um excelente exemplo, e o ensino superior melhor ainda: o ensino público pode ser melhor que o privado, e portanto não há, por esta via, qualquer argumento que sustente a ideia de que só a privatização do ensino permitirá que ele melhore.
Mas há pior ainda: uma instituição como o voucher aumentaria, inevitavelmente, a pressão para que as escolas públicas fossem desaparecendo. E assistiríamos então a um processo de estratificação progressiva: a maioria dos melhores professores, a melhor gestão de escolas, num mundo que construiu a sua escola com o objectivo de maximizar o lucro nos estabelecimentos de ensino, começariam a concentrar-se nas escolas onde se pagam melhores salários, que por isso mesmo teriam de ser mais caras e portanto apenas acessíveis aos que têm mais dinheiro. O ponto de partida ?filosófico? do voucher (o de que com ele haverá mais liberdade de escolha para os estudantes com menos recursos) fica assim posto em causa e a situação inverte-se por completo: um estudante pobre ainda poderá, hoje, com a força que o ensino público tem, ter a ?sorte? de poder escolher uma escola pública de qualidade. Mas, a partir do momento em que a escola pública perca importância, começará uma estratificação no ensino que fará com que a melhor qualidade seja também quase sempre a mais cara e portanto os estudantes de menos recursos passarão a não ter, de facto, liberdade de escolha. Podem pagar, é certo, mas apenas as escolas mais baratas, tendencialmente as piores. Haverá excepções. Bons professores e gestão eficaz de escolas continuarão a existir em todo o lado. Mas a tendência será cada vez mais acentuada no sentido de apenas permitir aos mais fortes, aos mais ricos, o exercício real do direito de escolha do ensino.
Um problema semelhante se passa com as propinas. Muitos defendem-nas por razões políticas. Mas muitos outros estão genuinamente convencidos de que, se o estudante que tira um curso superior vai ganhar, por esse facto, melhores salários, então é justo que partilhe os custos desse ensino. Mais uma vez estamos perante uma situação como a do voucher, que exige talvez o chamado ?pensamento lateral?, uma forma de abordagem que rompa com o pensamento dito ?normal?, cheio de estereótipos e de verdades (mentiras, de facto) feitas.
O voucher de ensino, as propinas, conduzirão a um ensino cada vez mais privatizado, cada vez mais estratificado e segregacionista, onde o direito de escolha será cada vez mais posto em causa, onde só os mais fortes, os mais poderosos, os mais ricos, terão de facto o direito à liberdade. Esse mundo não o queremos, e muito menos a mentira que está por trás da sua construção, vestida com o disfarce de uma maior liberdade para todos.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 128
Ano 12, Novembro 2003

Autoria:

Agostinho Santos Silva
Engenheiro. CTT.
Agostinho Santos Silva
Engenheiro. CTT.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo