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O primeiro dia de aulas

ESTAMOS NA VÉSPERA DA ABERTURA DO ANO LECTIVO?UNS CHEGARÃO ACOMPANHADOS PELA MÃE, PELO PAI, PELOS DOIS, PELO AVÔ, PELA AVÓ? MAS OUTROS CHEGARÃO TAMBÉM MEDROSOS, SOZINHOS, À ESPERA DE ENCONTRAR UM AMIGO QUE TORNE A COISA MAIS PESSOAL.

Escrevo na véspera da abertura oficial do ano lectivo para o ensino básico e secundário. Novo ciclo se avizinha: para os alunos, para os pais e para os professores. Para os iniciados, os meninos que pela primeira vez vão chamar ?senhor professor?, ?senhora professora?, esses catraios de 6 anitos, trata-se mesmo duma grande mudança: novos ritmos, novas roupas, novos livros, novos cadernos... Claro que, também aqui, as desigualdades se  notarão. De facto, muitos serão também os meninos e meninas que não terão roupas novas para levar. Alguns pais ainda nem sequer tiveram dinheiro para comprar todo o material escolar. 
Uns chegarão acompanhados pela mãe, pelo pai, pelos dois, pela avó, pelo avô... mas outros chegarão também medrosos, sozinhos, à espera de encontrar um amigo que torne a coisa mais pessoal.
O Pedro já tem a mochila arranjada e diz que quer levar os livros todos porque podem ser precisos. Quando muito deixa algum caderno porque ainda não deve haver muitos ?trabalhos?. Diz que leva também uma afiadeira. Instado a distinguir o jardim escola, onde tem andado, da escola para onde vai, diz que ?não há grande diferença... Vamos é ter muitos trabalhos para casa?. ?Agora não é só desenhos?.
O gaiato, que vai para a escola e já sabe escrever, registava o nome em etiquetas para colar nos livros de português, matemática e estudo do meio e logo a mãe observou: então Pedro, como é que se agarra na caneta? E o puto lá fez um esforço para combater o hábito de rodear de igual modo a caneta com todos os dedos. Eis que a norma escolar começa mesmo em casa. Não fora a mãe professora.
Mamã, depois ajudas-me a fazer os trabalhos de casa?
Claro, vou-te ajudar quando precisares.
Mas há trabalhos todos os dias, não é? Eu vejo a mana sempre a fazer trabalhos, trabalhos, à noite e ao fim de semana (a irmã do Pedro vai para o 10.º ano)...
Vais ter que fazer alguns. Mas também vais ter dias em que fazes os trabalhos na escola e em casa não fazes.
Mas eu tenho medo de não conseguir fazer os trabalhos todos.
Não meu querido! Vais conseguir fazer todos. Mas olha que na escola tens que estar com muita atenção ao que diz a professora para saberes fazer tudo.
O Pedro arrumou a bolsa dentro da mochila, pô-la, carregada, pela primeira vez, às costas e disse: ?mas amanhã será mesmo preciso levar já a mochila?
Posto isto, entrou de novo no seu mundo infantil habitual. Jogou Playstation 2, fez pesquisa na Internet, disse dois ou três vocábulos em Inglês (Wait a moment please) e em Francês (Comment ça vat?) e leu extractos do texto que o pai escrevia. Sim, leu, porque embora sem ter ainda ingressado na escola, a escola veio até à sua casa. Toda a família passa o seu tempo de volta da leitura e da escrita e o Pedro aprendeu sozinho as arte de ler, mal tinha feito 5 anos. Começou por ler títulos de jornais, de livros, etc. para passar a ler de fio a pavio as histórias que anteriormente os familiares lhe liam. Aprendeu a escrever no computador, soletrando, inicialmente, o seu nome e pequenas palavras em jogos de computador.
E agora Professor? Que vamos fazer com este e outros Pedros que o mundo tem? Aprendeu a ler, escrever e contar fora da escola. Não, não se trata de nenhum menino prodígio. Trata-se, sim, de que a sociedade da informação põe ao dispor de muitos meninos de 4 e 5 anos, formas e contextos lúdicos que os ensinam mais que o b a ba da lógica escolar. Eles até já fazem instalação de programas que muitos adultos nunca conseguirão fazer...
E agora Professor? O Primeiro dia de aulas traz alegrias para muitos mas também novos problemas. Para todos. Alegria para os meninos que estão fartos de férias, medo para os miúdos que desconhecem o mundo da escola, apreensão para os pais, trabalho para os professores...
E que fazemos com os ?Pedros?? Fazemo-los aguardar pelos mais atrasados no processo da leitura e da escrita? E que fazem, entretanto? Passamo-los para o ano seguinte? Estaremos nós professores preparados para lidar com as diferenças, também com esta diferença? Qual o papel do professor na sociedade cognitiva?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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