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À procura de Rosinha

Quando o telefone tocou, o tacho de arroz malandro estava ao lume e Elvira, a pingar de suor, fritava a costeleta para o marido que estava para chegar. O primeiro toque não obteve resposta, ao segundo Elvira pôs o arroz no mínimo, desligou a frigideira e correu para o corredor.
Do outro lado da linha uma voz trémula pedia desculpa pelo incómodo e perguntava se estava a falar para a casa de algum familiar de uma idosa chamada Rosinha. Elvira disse que não. Mas do outro lado insistiram. É que a Rosinha, último nome Costa, estava a morrer. E quem falava era uma vizinha que procurara entre os papéis da idosa um nome ou um número de telefone, alguém das relações de Rosinha a quem passar a notícia. O resultado dessa busca era aquele número, anotado nas costas de uma agenda amarelada, acompanhado por um nome: Carlos.
Ao ouvir o nome Carlos, Elvira lembrou-se que o seu vizinho do 14 se chamava assim e disse à senhora que ia ver o que podia fazer por ela. Desligou o telefone. Voltou à cozinha, apagou o tacho do arroz que já estava pronto e saiu porta fora a chamar a vizinha.
Em tronco nu e calções, Carlos estava a terminar de almoçar. Quando a campainha tocou, Linda, a mulher de Carlos, pousou o prato coberto de detergente na banca da louça, passou as mãos por água e foi abrir a porta.
Elvira entrou e contou-lhes a história do telefonema. Mas tão pouco Carlos conhecia alguma Rosinha. Pelo menos que fosse sua parente. A menos que, seria mesmo uma possibilidade, a tal da Rosinha fosse a senhora que há 27 anos atrás, quando Carlos e Linha ainda eram um jovem casal recém-casado, vivera na casa onde eles agora viviam.
Sim a tal senhora chamava-se Rosa. E era tratada por Rosinha. Mas quantas Rosas seriam Rosinhas neste mundo?
O que Carlos sabia sobre a Rosinha, que morara na sua casa, era que a senhora, na altura de 50 anos, era cliente da sua avó Gertrudes (falecida há muitos anos) que era modista. Sabia também que ela vivia sozinha, mas tinha um senhor que um dia foi trabalhar para o Brasil. E que, por isso, Rosinha decidira entregar a casa ao senhorio e partir também para o Brasil. Por essa altura, Carlos procurava uma casa para alugar. Mas estava difícil. Então a sua mãe, que também era modista e trabalhava com a sogra Gertrudes, ao ter conhecimento de que Rosinha iria entregar a casa, havia pedido à Rosinha que falasse com o senhorio a ver se ele alugava a casa ao seu filho.
Se as duas Rosinhas, a que estava a morrer e a que vivera na sua casa antes de si, fossem a mesma Rosa, pensou Carlos, a sua mãe talvez conhecesse algum parente da senhora.
Ao ver que o caso estava encaminhado, Elvira pediu desculpa ao vizinho pelo incómodo e voltou à sua cozinha. Não fosse o marido chegar e ainda não ter a comida pronta.
Carlos pegou no telefone e ligou à mãe. Dona Augusta, cozinha já toda arrumada, acabava de se sentar em frente à televisão a ver a Sessão da Tarde. O toque do telefone aborreceu-a. Levantou-se a custo, mas deu o esforço por compensado quando ouviu a voz do filho.
Augusta teria a mesma idade de Rosinha quando as duas se conheceram no atelier de costura da sogra. Mas as suas vidas apenas se cruzaram quando, durante a prova de um saia-casaco, Rosinha lhe dissera que ia estrear a toilette no barco que a levaria para o Brasil. Fora assim que Augusta soubera que a casa de Rosinha, muito bem localizada no centro da cidade, iria ficar vazia e então tivera a ideia de lhe pedir que intercedesse junto do senhor Meireles, seu amigo e seu senhorio (já falecido) para que a casa fosse prontamente alugada a Carlos. Isto era o que Augusta sabia de Rosinha. Mas a haver alguém que soubesse mais alguma coisa, disse Augusta ao filho, seria a Cilinha, uma vizinha de Carlos, a mais antiga moradora do prédio, também cliente da avó Gertrudes e que por jeitos teria sido muito amiga de Rosinha.
Como Carlos estava em casa ?à vontade? (calções e tronco nu) pediu à mulher que fosse perguntar à Cilinha se sabia mais alguma coisa da Rosinha que alí morara, inclusive se o apelido dela seria Costa. 
Cilinha e o marido tinham acabado de comer umas sandes de presunto e queijo. Com obras em casa não havia grande paciência para tachos e pratos.         
Ao ouvir a história do telefonema, Cilinha quase chorou. Tinha a certeza: Rosa Costa, era o nome de Rosinha.
As duas amigas começaram por ser colegas de trabalho na Maribel, uma loja de tecidos finos (importados directamente de Paris) que ficava na Baixa. Rosinha contara mais tarde a Cilinha que o seu pai tinha umas terras para os lados da Régua. Gente rica da qual Rosinha havia fugido para ganhar a vida por si só. E sozinha estivera até conhecer um senhor, bem de vida, uns anos mais velho do que ela. Com ele partira para o Brasil. Por lá se casaram e ficaram mais de dez anos. Até que a saúde do marido os obrigou a voltar a Portugal. Há uns anos Cilinha soubera que o marido de Rosinha morrera. Deixando-a, possivelmente, sozinha na vida. Agora sabendo-a a morrer, Cilinha lamentava as ?voltas da vida? que haviam reduzido o contacto com a amiga às novidades trazidas por terceiros. Mas mesmo assim iria ter com ela. Onde quer que ela estivesse. Precisava apenas de telefonar a quem havia telefonado a Elvira. Assim Rosinha se aguentasse!
Com um sentimento de missão quase cumprida, Linda voltou a casa para contar a história de Rosinha ao marido, mas este havia adormecido no sofá, palito no canto da boca e ressonar forte. Então Linda foi bater à porta de Elvira que entretanto descobrira, para sua grande mágoa, que não anotara o número de telefone da pessoa que lhe ligou. Sentaram-se as duas no sofá. Em silêncio rezando para que o telefone voltasse a tocar. Na televisão começava a terceira parte da Sessão da Tarde.
Algures, uma vizinha desesperada procurava alguém que conhecesse uma velhota às portas da morte. Alguém que soubesse a sua história ou simplesmente se ocupasse das cerimónias fúnebres.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 127
Ano 12, Outubro 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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