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Crime e castigo

Á conversa com Armando Coutinho, especialista em criminologia.

Os ?homens do crime? nascem e crescem com valores contrários aos instituidos socialmente. Para eles e os que lhes são próximos a figura que  simboliza o medo é o polícia. A falta de afectos está na origem da maioria dos comportamentos desviantes. E a sociedade ainda desconfia de quem um dia esteve institucionalizado. A PÁGINA passou uma tarde com Armando Coutinho, psicólogo no Estabelecimento Prisional do Porto e especialista em criminologia. Ficam aqui alguns tópicos dessa conversa.

A origem dos comportamentos desviantes

«A grande parte dos comportamentos desviantes tem a sua raiz na ausência de afectos. A destruturação afectiva e emocional das famílias tem sequelas irreversíveis. Estamos a falar de famílias e de gerações que nasceram e cresceram com valores contrários àqueles que estão instituídos na sociedade. Valores dos quais eles vão tirando algum partido. Nos bairros mais carenciados provavelmente se perguntar quem é a figura que simboliza o medo a resposta não vai ser o traficante mas sim o polícia! Isto porque é o agente policial que vai impedir o traficante de ter o lucro que, para alguns deles, serve para fazer face às despesas do quotidiano. Muitas vezes é uma questão de sobrevivência...»
 
Consequências psicológicas da supressão da liberdade

«Tem várias repercussões, todas elas mais ou menos negativas. Dependendo da pessoa em causa a forma de reagir será diferente. Mas a privação da liberdade pode provocar problemas sensoriais. O excesso de encarceramento pode levar a um isolamento. O facto de existirem barulhos característicos da prisão pode levar as pessoas a ficar com a sensação de que os estão a ouvir repetidas vezes. O viverem confinados num espaço dá-lhes aquilo que se chama a ?cegueira da prisão?. Os problemas associados ao facto de estarem a comer numa cantina onde se faz comida para muita gente. Depois há vários autores que defendem que o stress prisional é também bastante prejudicial à saúde dos reclusos. A própria sobrelotação [do estabelecimento] pode ditar o ajustamento ou o desajustamento da adaptação à prisão.
Depois, se pensarmos no excesso de prisão preventiva temos de considerar que o ficar privado da liberdade é ter um lar suspenso, destruído. É ver a família a correr para a cadeia e as relações afectivas a se diluírem. Isto independemente da condenação ou não.»

Reabilitação social de pessoas institucionalizadas

«Nem sempre é fácil alguém que saia de uma instituição prisional reabilitar-se porque as pessoas dificilmente lhes dão emprego e se o fazem são em situações precárias. Aliás, um indivíduo de etnia cigana devido ao estereótipo que ainda existe dificilmente conseguirá um trabalho lícito, com regalias. E depois a estigmatização estende-se a todo o género de institucionalização, nem precisa de ser numa prisão, pode ser num reformatório.
Apesar de tudo isto a reinserção existe! E vai dando alguns passos. Mas temos de perceber que estas coisas não acontecem à velocidade que desejaríamos porque na sociedade subsistem estigmas que é necessário desconstruir.
Por outro lado, a sociedade também tem de pensar que quando estes indivíduos, os ?homens do crime?, são institucionalizados é porque já tudo antes falhou: a família, a escola, o mundo laboral? [Face a este cenário] não se pode esperar uma solução mágica de quem não a tem para dar.
Ainda assim, a reinserção e a reabilitação passam por coisas simples que estão ao alcance da nossa observação directa. Desde a limpeza e a manutenção das ruas e jardins públicos à das matas e das praias, passando pela dos edifícios públicos. Esta seria uma forma de criar uma outra imagem social a respeito do indivíduo que esteve institucionalizado. Seria fundamental que acontecesse.»

Reeducar as competências pessoais

«Pode ser mais importante munir alguém que precisa de voltar à vida em sociedade de competências que lhe permitam cumprir um horário, se apresentar para uma entrevista de emprego, ser assertivo e ter um estilo de comunicação adequado à situação do que o ensinar a abrir o Word ou a plantar uma árvore. É que no que toca às competências técnicas muitas vezes já existem e estão até muito desenvolvidas. O que lhes falta a quem precisa de se inserir na sociedade são as competências pessoais e sociais que só se aprendem na relação. Mas como estes indivíduos na sua maioria são oriundos de meios sociais desfavorecidos, onde as relações eram pseudo-relações, onde os afectos estavam invertidos e onde havia uma disfuncionalidade emocional, eles não aprenderam essas coisas que ditam as regras do ajustamento e por isso têm alguma dificuldade em se inserirem.»

O novo conceito de polícia

«Em Portugal ainda subsiste muito a visão do polícia penalizador e repressivo. No entanto, as novas gerações de polícias têm vindo a derrubar essa ideia. Eu penso na polícia como uma entidade de prevenção que alerta antes de punir, multar.
É preciso incutir nos jovens a ideia de que a polícia está ao abrigo de ajudar o cidadão. Como? Promovendo acções de formação da polícia na escola, aproximando os agentes dos jovens e assim criando uma imagem social diferente da ?autoridade?»

Formar a polícia para a relação

«Os jovens que vêm de meios desfavorecidos e estão habituados a lidar com a frustração vão reagir mal a alguém que bate sem perguntar antes. Porque esse é o ambiente a que eles vêm habituados. Daí que mais do que formar em informática ou gestão administrativa, seria fundamental formar os polícias para a relação, para o aspecto do relacionamento interpessoal. E desde logo, nos concursos de recrutamento era muito importante ter isso em linha de conta. Nem todos darão para andar no patrulhamento. Há pessoas que podem estar mais habilitadas a fazer outras tarefas, mais burocráticas, sem que isso seja desprestigiante.
Temos de desconstruir esta ideia do polícia caça multas. Temos de pensar no polícia mais activo e próximo do cidadão.
No que toca aos emigrantes de Leste, por exemplo, eles constituem um problema preocupante desde logo porque não há nas esquadras quem os entenda ou fale a língua deles! E para alguém que não fala português, um conjunto de pessoas que vestem da mesma maneira pode ser um sem número de coisas: desde um grupo terrorista até a uma máfia que os está a tentar sequestrar.»


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 126
Ano 12, Agosto/Setembro 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Armando Coutinho Pereira
Pós-graduado em criminologia
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Armando Coutinho Pereira
Pós-graduado em criminologia

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