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Em jeito de balanço

É IMPORTANTE DESTRINÇAR DIFERENTES TIPOS DE UTILIZADORES DE HEROÍNA ? OCASIONAIS, EXPERIMENTAIS, DE FIM-DE-SEMANA OU DEPENDENTES ? EVITANDO ASSIM QUE A VARIABILIDADE DOS COMPORTAMENTOS APRESENTADOS SEJA COLOCADA, POR JUNTO, ?DENTRO DO MESMO SACO?.

Nesta coluna, e apesar de uma primeira remissão para uma sociedade outra ? o estatuto de antropólogo parece exigi-lo ?, viemos principalmente a referir-nos a utilizadores de heroína, espécie de droga-paradigma em torno da qual se veio a construir grande parte do discurso hegemónico contemporâneo sobre as dependências.
Em termos muito gerais, foram dois os conceitos que orientaram esta nossa intervenção. Tomado de empréstimo a Joan Pallarés, a nossa análise beneficiou da proposta de «itinerário de uso», na qual este autor chama a atenção para a necessidade de destrinçar diferentes tipos de utilizadores de heroína ? ocasionais, experimentais, de fim-de-semana ou dependentes ? evitando assim que a variabilidade dos comportamentos apresentados seja colocada por junto ?dentro do mesmo saco?. Enquanto instrumento de análise, esta proposta pode vir a revelar-se extremamente útil se ? seguindo um outro autor, Gregory Bateson, cuja reflexão se desenvolve a propósito dos alcoólicos ? tivermos em conta as implicações lógicas de um discurso que remete a explicação dos consumos de uma substância psicoactiva para quadros encontrados exclusivamente a montante dessas mesmas utilizações: se é uma qualquer patologia localizada na sua sobriedade que faz o alcoólico beber, então a intoxicação corresponde a uma correcção subjectiva dessa mesma patologia. Deste ponto de vista, o apelo à abstinência é passível de se constituir num facto paradoxal já que a sua efectivação consistiria num retorno ao mesmo quadro onde são encontradas as causas para beber. Sabendo que as coisas não são assim tão simples, esta abordagem tem a grande vantagem de centrar a atenção no itinerário de uso de cada utilizador. Ou seja, é o uso e não a sua ausência que passa a ser o objecto da análise.           
O que nos conduz ao segundo conceito: o produto. Ouvindo com atenção as narrativas dos utilizadores, ficamos espantados com o facto de, para muitos deles, as primeiras tomas de heroína não constituírem aquilo que poderíamos denominar uma experiência de prazer. Em muitos casos, poder-se-ia classificá-las, isso sim, como experiências de desprazer. Porquê, então, a reiteração no uso? E a resposta é quase sempre encontrada na situação relacional destes utilizadores: é, por exemplo, comum que as mulheres continuem o consumo no contexto de uma relação diádica com outro ou outra consumidora, sendo também frequente que os homens o tenham levado a cabo no contexto do seu grupo de pares. Quer dizer, o sentido que o uso vem adquirindo ? e no que ele vem sendo socialmente aprendido como experiência de prazer ? resulta de um quadro onde a circulação da droga no organismo biológico não pode ser separada de uma mobilidade que é atributo de pessoas em relação. Para além da substância, é necessário olhar também para as formas e para os objectos através dos quais a droga é consumida, tendo igualmente em conta a interacção nos espaços onde a sua aquisição vem a ser tornada possível e as suas tomas se realizam. Por oposição a um discurso de exclusiva centralidade da substância, dirigimo-nos, portanto, para uma análise da centralidade do produto.    
Mas ? e, fazendo apelo da condição de antropólogo, este é um ponto fundamental ? a reflexão sobre os utilizadores de drogas é passível de vir a trazer consigo um outro ganho. Ela mostra-nos as interacções, os espaços urbanos e os seus habitantes no devir contínuo da sua criação social recíproca. Ou seja, ao acompanhar aqueles últimos no processo de transformação de um conjunto de espaços geográficos em ?territórios psicotrópicos? ? remetemos aqui para a feliz designação de Luís Fernandes ? a cidade revela-se-nos tal como é: um processo. E, ao acompanhá-lo centrando a atenção no Outro, acabamos por nos descortinar a nós próprios. Por exemplo, ao aferir, no Outro, a importância da repetição de uma trajectória por um espaço determinado e a frequência cadenciada de um bairro urbano, verificamos a medida em que procedimentos semelhantes se revelam decisivos para o processo em que nos vamos construindo e reinventando a nós mesmos.
Afinal, conceitos como os de itinerário de uso e produto poderiam ser aplicados ao estudo dos nossos próprios processos de consumo.


  
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Edição:

N.º 126
Ano 12, Agosto/Setembro 2003

Autoria:

Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa
Luís Almeida Vasconcelos
Univ. Técnica de Lisboa

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