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Conhecer com as mãos!

UM  TRABALHADOR RURAL ? DISSE-ME ENTÃO: «VOCÊ CONHECE COM A CABEÇA, ELA ? APONTANDO PARA A ESPOSA ? CONHECE COM A LÍNGUA E EU CONHEÇO COM A MÃO ? MOSTRANDO SUA MÃO CALEJADA DO USO DA ENXADA ?

Como se conhece? O paradigma hegemônico, sob o domínio da razão, nos faz pensar que só através da razão somos capazes de conhecer. No entanto, convivo com trabalhadores rurais que, pensando com outras lógicas, muito nos ensinam.
Na tentativa de compreender o compreender das classes populares, tenho observado que uma das formas que explicitam seus conhecimentos é no fazer. Como seus conhecimentos são pragmáticos, é nas ações cotidianas que mostram o quanto e como sabem. Assim, entendo como um carpinteiro que, à luz da racionalidade não conhece geometria, constrói coisas tão maravilhosas, demonstrando conhecê-la muito bem.
Certa vez conversando sobre esses diferentes saberes e conhecimentos com um trabalhador rural, ele me explicou de seu jeito que existem várias formas de conhecer. O ambiente da conversa era uma cozinha pobre numa área de acampamento do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Falávamos sobre os modos de produzir na agricultura, enquanto saboreávamos uma broa de milho. Disse-me então: ?você conhece com a cabeça, ela (apontando para a esposa) conhece com a língua e eu conheço com  a mão? (mostrando sua mão calejada do uso da enxada, da foice e do martelo).
Diferentes saberes e conhecimentos não poderiam ser construídos de uma única forma. Ao contrário do que o paradigma hegemônico tenta nos impor, a razão é apenas uma das formas de conhecer o mundo. A experiência sensível também leva ao conhecimento do mundo.
E quem ?sabe mais?? A academia induzindo, deduzindo, e às vezes, intuindo? Ou quem, no mundo, aprende com a prática, fazendo, re-fazendo, testando?
Qual aluno ?sabe mais?, o que responde corretamente às questões da prova de matemática, ou aquele que, na vida, nos sinais de trânsito vendendo bala, faz da matemática uma astúcia popular para garantir a vida? De que serve o conhecimento e a escola se não for para tornar a vida e o mundo cada vez mais decente?
Ali, naquela cozinha, fiquei a pensar o que a escola poderia aprender com este Trabalhador Sem Terra? O quanto a escola não vê, nega, recusa e despreza saberes que tanto poderiam ajudá-la a conquistar a utopia a que se propõe?
Se, como acredito, conhecemos de várias formas, vários também devem ser os modos de aprender. Impor ao aluno aprender apenas o que e na forma que o/a professor/a ensina, muitas vezes leva à exclusão e ao falso sentimento de que ele não aprende porque não foi feito para isso. Vendo apenas de um modo, a escola não vê que aquele/a que ela julga não saber, sabe.
Seu Severino não aprendeu como nós, que a indústria da semente altera os genes, para impedir sua reprodução. Mas ele sabe que a cada colheita o milho, fruto da semente comprada, fica mais fraco e por isso melhor é fazer sua própria semente. O conhecimento de sua observação do mundo, de sua prática, faz com que altere sua relação com o mundo, o que, recursivamente altera sua observação.
Nessa práxis, a relação não é prática-teoria-prática, mas prática-reflexão-vida. A prática é o início, o fim é a vida, é viver sempre melhor, decentemente. O que poderíamos chamar de teoria do senso comum é menos cartesiana e mais aristotélica, em que as experiências sensíveis vão fazendo sentido e o bom senso conduzindo para um modo de fazer cada vez melhor. Não deve haver, pois, uma relação hierarquizada. Ambos os conhecimentos são válidos e importantes, desde que estejam em diálogo, construindo uma nova relação entre ciência e senso comum.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 126
Ano 12, Agosto/Setembro 2003

Autoria:

José Guilherme Franco Gonzaga
Curso de Pós-Graduação Latu-sensu Alfabetização de Alunas e Alunos das Classes Populares da Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro , Brasil
José Guilherme Franco Gonzaga
Curso de Pós-Graduação Latu-sensu Alfabetização de Alunas e Alunos das Classes Populares da Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro , Brasil

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